Liderando o mais intenso processo de rearmamento visto na Europa desde o fim da Guerra Fria, a Polônia abriu o ciclo de dissidências que ameaça a continuidade do apoio ocidental a Kiev no conflito contra os russos. A recepção fria a Volodimir Zelenski nos Estados Unidos, nesta semana, sinaliza tempos difíceis para o presidente ucraniano.
A máxima de que toda política é local se aplica aqui. O que definiu o explosivo anúncio do premiê polonês, Mateusz Morawiecki, de que seu país não faria novas entregas de armas para o vizinho e passaria a investir em sua própria defesa, foi principalmente a eleição parlamentar de 15 de outubro.
O partido direitista no poder ininterruptamente desde 2015, o PiS (Lei e Justiça na sigla polonesa), tem enfrentado pressões ainda mais à direita, principalmente da sigla extremista Confederação, por seu apoio a Kiev. Há um sentimento nacionalista no país contra os vizinhos, e quando o russo Vladimir Putin diz que Varsóvia quer para si o oeste da Ucrânia, sabe que nota toca.
O problema da vez é o embargo polonês aos grãos ucranianos, vistos como uma ameaça aos produtores locais. Isso dá ótimo tema em campanha eleitoral, então Varsóvia elevou o tom, enquanto abriu negociações com o governo de Volodimir Zelenski que poderão ou não dar em algo. Há também o que a extrema-direita chama de ingratidão ucraniana, e há quase 1 milhão de refugiados do vizinho no país.
Mas este são problemas pontuais. De fundo, há o megainvestimento polonês em Defesa e as ambições de Varsóvia. O plano anunciado pelo presidente Andrzej Duda e por Morawiecki é o de dotar o país com o mais poderoso Exército terrestre da Europa continental até 2026.
Para tanto, desde 2020 o país tem saído às compras. Já tem encomendas, entre anúncios e papéis assinados, de US$ 43,1 bilhões dos Estados Unidos, de quem já começou a receber tanques pesados Abrams. Este ano, os primeiros caças de quinta geração F-35, de um lote de 32, devem chegar ao país.
A Guerra da Ucrânia mudou o cenário, e Washington parece satisfeita com a ideia de ter na Polônia uma fortaleza militar contra a Rússia no flanco leste da Otan. O Congresso americano deu sinal verde para a venda de 48 sistemas antiaéreos Patriot e de 96 helicópteros de ataque Apache recentemente, e a Boeing anunciou o interesse polonês na versão mais avançada do caça F-15.
Se adquirido, o avião poderá compor com o F-35 um vetor de utilização de bombas nucleares B61 dos americanos, caso o pedido feito pela Polônia para sediar tais armamentos em seu território, feito depois que Putin posicionou armas análogas na vizinha Belarus, seja atendido.
Em uma triangulação digna da Guerra Fria 2.0 entre EUA e China em curso, os poloneses também viraram o maior cliente militar da Coreia do Sul, rival de Pequim, na história: já assinaram acordos de US$ 13,7 bilhões para comprar nada menos que 1.000 tanques K2, 800 dos quais serão produzidos localmente, 48 caças leves FA-50 e outros produtos.
Com tudo isso, Varsóvia quer deixar para trás suas armas datadas do tempo em que a capital dava nome ao pacto de países comunistas dominados por Moscou no Leste Europeu. Foi desse arsenal, com caças MiG-29 e 240 tanques T-72, que saíram os R$ 15,6 bilhões de ajuda militar que colocam a Polônia no sexto lugar de maior apoiador no quesito até o fim de julho no ranking do Instituto para Economia Mundial de Kiel (Alemanha).
Em termos proporcionais, o rearmamento é brutal. Na série histórica do Banco Mundial, que vai até 1980, o máximo que o país havia gastado com defesa foi no auge da Guerra Fria, em 1982, com 3,2% de seu PIB (Produto Interno Bruto) dedicado ao setor.
Desde a anexação da Crimeia em 2014, a despesa polonesa oscilava em torno dos 2% preconizados pela Otan como meta, tornando o país 1 dos 11 que a cumprem, em 31 membros de aliança. Em 2022, com a guerra, o número saltou para 2,4% e agora o governo promete fechar 2023 puxando a fila do clube, com 4% do PIB.
Por fim, o país pretende aumentar seu efetivo militar dos atuais 114 mil para 300 mil até 2035, o que o colocaria ao lado da Turquia como o maior contingente da Otan. Especialistas se questionam sobre a viabilidade no longo prazo desse gasto todo, mas até aqui isso não demoveu o governo de assinar os contratos —um cálculo realista, dada a percepção de ameaça russa, mas também eleitoral.
As profundas desconfianças de um país que passou séculos sendo partido por potências vizinhas, no caso mais recente a Alemanha nazista e a União Soviética em 1939, tornam a militarização, associada ao nacionalismo de direita prevalente, quase uma profecia autorrealizável.
Não se espera ainda que a Polônia deixe de apoiar politicamente Kiev na guerra. Mas isso é um risco real a partir de 30 de setembro em um vizinho de ambos os países, a Eslováquia, que conduzirá eleições parlamentares neste dia.
Lá, o favorito para vencer é o partido do ex-premiê Robert Fico, um apoiador aberto de Putin e crítico do suporte dado por Bratislava aos ucranianos. O país já forneceu blindados e MiG-29 a Kiev, somando segundo o instituto de Kiel US$ 700 milhões até julho.
Parece pouco, mas em proporção do PIB é bastante, deixando a pequena nação no sexto lugar em termos de ajuda militar à Ucrânia, sem contar os valores dados por meio de convênio da União Europeia, entre 41 doadores. Fico quer mudar isso, e promete cessar toda o apoio direto a Kiev.
Em novembro, é a vez de a Holanda ir às urnas. Não é um caso tão extremo em termos de risco de perda de apoio para os ucranianos, mas dois partidos de extrema-direita estão crescendo nas pesquisas com plataformas que questionam o impacto da guerra no país. Em proporção do PIB, Amsterdã está em oitavo lugar no ranking de suporte a Kiev.
Uma ressalva tem de ser feita. Dois países que passaram a ser comandados pela direita vista como antiguerra, Itália e Finlândia, não retiraram seu apoio a Kiev. Ao contrário: Helsinki ingressou na Otan, dobrando a fronteira seca entre países da aliança e a Rússia.
Ainda assim, de tempos em tempos autoridades ocidentais colocam em dúvida o dispêndio, e outras cobram gratidão publicamente, como fez Duda em Nova York.
Tudo isso, contudo, é um aperitivo ao real problema para Zelenski: a eleição norte-americana de 2024. O ucraniano está sob pressão do governo de Joe Biden para mostrar resultados, e teve pedidos para falar no Congresso dos EUA após participar da Assembleia-Geral da ONU nesta semana negados.
“Onde está a prestação de contas sobre o dinheiro que já gastamos? Qual é o plano da vitória?”, questionou o republicano Kevin McCarty, presidente da Câmara, à rede ABC. Ao fim, Zelenski saiu com um pacote magro, em termos relativos, e sem os mísseis de longo alcance que desejava.
Sem obter frutos até aqui na sua contraofensiva, que tem menos de um mês até o clima obrigar seu fim, o ucraniano tem se apoiado em ações mais ousadas contra alvos militares russos na Crimeia, algo que os EUA não desejam por considerar a península um último ativo a ser usado em negociações.
A partir da virada do ano, Biden estará em campanha aberta contra, provavelmente, o antecessor Donald Trump. O democrata tem enfrentado críticas no Congresso pelos R$ 220 bilhões dos R$ 500 bilhões que Kiev recebeu de ajuda até julho, e seu rival republicano já disse que irá rever a despesa se ganhar.