É o zunido das bombas cortando o ar que incomoda Valentina. As explosões, ela conta, são apenas como trovões em um dia de tempestade. “Mas aquele som, sabe, aqueles segundos de expectativa antes de ouvir a explosão, com isso não consigo me acostumar”, diz a aposentada de 70 anos, uma ativa cantora no coral da Igreja Ortodoxa de São Nicolau, no centro de Kupiansk, cidade no nordeste da Ucrânia.
Enquanto no sul do país as forças ucranianas tentam romper as linhas de defesa russas, aqui quem está na ofensiva são as tropas de Moscou. Nas últimas semanas, conquistaram terreno e agora estão a menos de dez quilômetros do centro dessa estratégica localidade, um entroncamento ferroviário que liga o sul da Rússia à região do Donbass e que, antes da guerra, tinha mais de 60 mil moradores.
No fim da manhã em que encontrei Valentina —ela prefere não divulgar o sobrenome— ensaiando cânticos sacros, Kupiansk estava estranhamente calma. O som da artilharia era constante, mas distante. Da parte elevada da cidade era possível ver as colunas de fumaça nos distritos ao leste, onde as tropas russas vêm ampliando seus ataques. Valentina preparava-se para voltar para casa na companhia de duas amigas quando o zunido chegou. Repentino, alto, assustador. Logo veio a explosão. Num ato reflexo, todos na igreja cobriram a cabeça, como se possível fosse proteger-se da violência de um míssil com as mãos.
A bomba explodiu três ruas abaixo, no meio de uma praça. Destruiu quatro carros e feriu dez pessoas sem muita gravidade. Nada exatamente extraordinário para um dia ensolarado deste verão em Kupiansk. O alvo, segundo os homens da Defesa Civil, era a principal agência do correio. “Todas as nossas agências nessa região foram totalmente ou parcialmente destruídas”, diz Iuri Savchenko, diretor do correio da província de Kharkiv, onde Kupiansk está localizada. “Ainda estamos operando aqui, mas no prédio que servia como centro de distribuição, por ser menos exposto.”
Savchenko não sabe até quando a agência de Kupiansk seguirá aberta. Mas ele, como as cinco funcionárias que todos os dias saem de casa sob o risco de serem bombardeadas, sabem bem que, se a agência fechar, a vida aqui ficará incrivelmente mais difícil. “Sem nós, boa parte da população que decidiu ficar aqui, quase todos os idosos, aposentados e enfermos, só poderão contar com a ajuda humanitária, não haverá mais nada.”
Nesta guerra, o correio tem sido vital para milhares de pessoas que seguem vivendo nas regiões onde as frentes de batalha estão quase em seus quintais, como em Kupiansk. Nenhum outro serviço público opera com tanta capilaridade e de forma tão constante mesmo em tempos de guerra. Na Ucrânia, o correio desempenha um papel que não se resume apenas ao envio de cartas e encomendas. As mais de 12 mil agências que estavam espalhadas pelo país até o início da invasão russa também atuavam como única alternativa bancária para as populações de áreas rurais ou isoladas.
Parte importante dos aposentados ucranianos ainda recebe seus rendimentos no balcão das agências. Em uma cidade semiabandonada e sob constante ataque como Kupiansk, o correio é a única maneira de a população conseguir ter acesso a dinheiro vivo, fundamental quando o fornecimento de energia é constantemente cortado por conta da destruição da infraestrutura.
“Agora pagamos três meses adiantados a todos os moradores daqui porque não sabemos se vamos continuar operando por muito mais tempo”, afirma Svitlana Oleynikova, 45, gerente da última agência ainda em operação por aqui, enquanto me mostrava que apenas uma das janelas do edifício em que estão operando ainda tinha os vidros intactos. “As outras se foram com as explosões e precisamos fechar com esses pedaços de madeira.”
Kupiansk foi ocupada pelas tropas russas nos primeiros dias da guerra. Tomaram a cidade sem disparar um só tiro e, contam os moradores, foram bem recebidos por boa parte da população. As forças ucranianas a retomaram na contraofensiva do outono de 2022, também sem muito confronto. Mas desde o fim de março Kupiansk voltou a ser alvo das investidas russas, em especial após a queda de Bakhmut, na região do Donbass. Nas últimas semanas, os ataques se intensificaram.
Desde a segunda quinzena de agosto o governo ucraniano tem feito uma intensa campanha para que os civis deixem a cidade e seus distritos, prevendo um agravamento das batalhas. Cerca de 2.000 pessoas já partiram, mas outras 10 mil insistem em ficar. Muitas delas usam a única agência do correio para enviar seus bens mais valiosos a parentes e amigos, temendo perder o pouco que têm nos combates.
Poucas horas depois de a agência central ter quase sido destruída por um míssil, Nina, 64, decidiu de uma vez por todas enviar sua coleção de relógios, algumas fotografias e um liquidificador para a filha, que agora vive no oeste do país, distante das frentes de batalha. “Eu ainda não decidi se vou embora, vamos ver como serão as coisas nos próximos dias”, diz ela, enquanto despacha seus embrulhos.
Desde meados de agosto o correio suspendeu qualquer serviço de entrega ou coleta domiciliar por aqui. O risco de os caminhões serem alvos de drones ou bombardeios é grande demais, diz Savchenko. “Nossa ideia é fazer um dia de entrega e coleta por mês, para aqueles que não conseguem vir até aqui, mas não sei se conseguiremos, os bombardeios estão constantes demais.” Os caminhões saem de Kharkiv, a capital da província, todos os dias. Em geral, chegam vazios e retornam cheios com os bens enviados pelos moradores locais.
Valentina, a cantora com ouvidos sensíveis ao som das bombas se aproximando, está decidida a ficar. Ela conta que está velha demais para se tornar uma refugiada. “Aqui ao menos eu tenho meu jardim e neste ano quero plantar batatas e tomates”, afirma, pouco antes de tomar coragem e enfim seguir para sua casa em meio ao som dos disparos da artilharia ucraniana. “Não se preocupe, esses estão indo para lá.”