Quatro processos no Supremo Tribunal Federal (STF) dão uma amostra de como a esquerda se articula para defender suas posições num tema crucial: a educação básica de crianças e adolescentes. Tramitam na Corte ações, apresentadas por PT, PSOL, PCdoB e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) – que reúne sindicatos de professores – que buscam derrubar leis do Paraná, São Paulo e Rio Grande do Sul que instituíram e regulamentaram a implantação das escolas cívico-militares em cada um dos estados.
Nesses processos, nada menos que 26 órgãos públicos federais, ONGs, associações e entidades, incluindo os próprios partidos, se juntaram para atacar o modelo, impulsionado no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que conquistou popularidade e apoio entre pais de estudantes, e alcançou, nos últimos anos, a maioria dos estados.
Famílias, governadores e prefeitos conservadores aderiram em massa às escolas cívico-militares por serem um raro caso de sucesso na educação brasileira e aplacarem um dos maiores problemas atuais da educação pública e diretamente responsável pelos maus resultados no aprendizado: a indisciplina e a violência no ambiente escolar, especialmente em bairros pobres e de periferia das cidades.
O resultado já é visível: o Paraná, que foi pioneiro na ampliação das escolas cívico-militares, com uma lei aprovada em 2020, manteve a liderança entre os estados no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do ensino médio. Entre as 20 escolas com as maiores notas, incluindo públicas e particulares, cinco são colégios administrados pela Polícia Militar, duas funcionam no modelo cívico-militar e seis são instituições com gestão federal.
Apesar do êxito do modelo, no ano passado, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretou o fim do programa federal implantado por Bolsonaro em 2019 para apoiar a conversão de escolas comuns em cívico-militares. Em reação, 19 governadores anunciaram que iriam manter o modelo, com base em leis estaduais.
Neste ano, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), propôs e aprovou, com amplo apoio na Assembleia Legislativa, a lei que regulamenta o funcionamento das escolas cívico-militares no estado. O Rio Grande do Sul, do governador Eduardo Leite (PSDB), fez o mesmo. E o Paraná, governado por Carlos Massa Ratinho Júnior (PSD), atualizou sua lei em 2022.
As ações no STF visam derrubar todas essas leis, que se tornaram modelo no país. Se a Corte considerar o modelo inconstitucional, todos os estados terão que acabar com as escolas cívico-militares; bastaria que os partidos acionassem o tribunal para derrubar cada uma das leis estaduais.
Os partidos e ONGs de esquerda receberam apoio do governo Lula, com pareceres da Advocacia-Geral da União (AGU) e do Ministério da Educação (MEC) recheados de críticas e apontamentos de supostas inconstitucionalidades, além de manifestações também contrárias de alas progressistas das Defensorias Públicas e do Ministério Público.
Nos processos, os únicos que se manifestaram a favor das leis, até o momento, foram aqueles que as propuseram e aprovaram: Tarcísio de Freitas, Ratinho Jr., e as Assembleias Legislativas de São Paulo, do Paraná e do Rio Grande do Sul. Da sociedade civil, apenas um advogado se manifestou no STF a favor da lei paulista, rebatendo cada um dos argumentos do PT.
A discrepância na mobilização junto à Corte – 26 órgãos e entidades contra e apenas 5 a favor, além de um cidadão que se manifestou em defesa das escolas cívico-militares (veja lista no final desta reportagem) – e a relevância do tema motivou o ministro Gilmar Mendes, relator das ações contra a lei de São Paulo, a convocar uma audiência pública, para que todos os interessados possam discutir a questão oralmente antes do julgamento no plenário do STF pelos ministros. A data prevista para audiência é 22 de outubro e as inscrições para participar se encerraram em 4 de outubro.
Ao convocar a audiência, no início de setembro, o ministro afirmou que o objetivo é conhecer melhor a evolução das escolas militares e cívico-militares no Brasil; a distinção prática entre escolas militares e escolas cívico-militares; impactos financeiros e orçamentários na implementação de escolas cívico-militares; a dinâmica pedagógica das escolas convencionais, das militares e das cívico-militares; e repercussões das escolas cívico-militares na segurança.
“A coleta de dados e argumentos tecnicamente qualificados e especializados permitirá que esta Corte se debruce com maior segurança sobre os fatos que conformam a aplicação da norma que cria o programa de escola cívico-militar, à luz dos princípios da liberdade de aprendizagem, ensino e pesquisa, do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, da gestão democrática do ensino”, escreveu Gilmar Mendes.
O que dizem os que criticam as escolas cívico-militares
Os partidos, ONGs e órgãos públicos contrários às escolas cívico-militares dizem que elas promovem uma “militarização” do ambiente escolar e, com isso, agridem a liberdade dos estudantes para manifestar suas opiniões e comportamentos. Argumentam que a cultura militar, nos quais impera a hierarquia e a disciplina, mina a “gestão democrática” do ensino, e a “valorização dos profissionais da educação”, dois preceitos previstos na Constituição.
A crítica da esquerda se dá por causa do emprego de policiais aposentados nas funções de monitoria das escolas e na segurança interna. As leis estaduais não dão a eles cargos de professores, que continuam oriundos de concursos públicos realizados pelas secretarias de educação. Cabe aos monitores militares executar atividades extracurriculares – que incluem lições de “Cidadania e Civismo” – bem como a inclusão, na rotina dos estudantes, de prestar continência à Bandeira e ao Hino Nacional. Outra insatisfação se dá em relação aos uniformes, mais formais e alinhados, além da proibição de cortes de cabelo extravagantes e uso de bonés e piercing.
“A educação não se torna libertadora, tampouco emancipatória, restringindo-se à proliferação do medo e da angústia. Cria jovens e adolescentes receosos de impor limites a quem lhe incomoda, subservientes a autoridades autocrática [sic], permeados de inseguranças e, por vezes, sem reconhecer a si próprio e o potencial de sua personalidade. Nas palavras de Michel Foucault, temos aí o ‘corpo dócil’”, diz a ação do PT. “Crianças e adolescentes são submetidos ao julgo [sic] da força policial dentro do ambiente escolar, como o policiamento ostensivo feito por esses policiais nas ruas, sem contar com o ambiente opressivo e tóxico”, diz outro trecho.
“A educação civil deve seguir sendo a base estrutural sobre a qual todo o edifício republicano brasileiro se erige, de modo que a alteração dessa estrutura fundamental pode fazer ruir, caso não combatida, a nossa democracia, na medida em que a militarização das escolas públicas representa verdadeira antítese institucional do espírito republicano e democrático que alicerçou a Constituição Federal de 1988”, afirmou o PSOL em suas ações.
Outra contestação é de ordem financeira: os partidos e sindicatos de professores dizem que, em São Paulo, os policiais monitores podem receber de gratificação, além do salário de aposentadoria, até R$ 6 mil por mês, mais do que um professor. O penduricalho é pago pela Secretaria de Educação, e não pela pasta da Segurança Pública. Argumenta-se também que policiais não têm, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nem na Constituição, qualquer função prevista na educação básica comum.
À época em que o governo Lula anunciou o encerramento do programa federal das escolas cívico-militares, a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC) divulgou uma nota técnica com as alegações para o encerramento da medida. Apontou o “desvio de finalidade das atividades das forças armadas”, e destacou que a “execução orçamentária dos recursos de assistência financeira destinados às escolas do programa” foi insuficiente entre 2020 e 2022. O órgão também criticou o argumento de que as escolas cívico-militares poderiam ajudar a solucionar questões sociais das localidades em que estão inseridos, já que as unidades apresentam características diferentes uma das outras.
O que dizem os que defendem as escolas cívico-militares
Em defesa das escolas cívico-militares, Tarcísio de Freitas, Ratinho Júnior, e as assembleias estaduais argumentam que os estados e municípios receberam da Constituição competência para gerir as escolas de ensino médio e fundamental. Argumentam ainda que a gestão, a direção das escolas, o projeto pedagógico e a seleção dos monitores continuam a cargo das secretarias de educação, conforme as leis estaduais aprovadas.
Os professores, protagonistas no ensino, são civis concursados. E a escola só se torna cívico-militar caso haja aprovação, em consulta pública, pela maioria da comunidade escolar.
Em defesa das escolas cívico-militares, Tarcísio de Freitas citou estudo da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), segundo o qual o modelo “reduz a distorção idade-série em 10% e aumenta o desempenho dos alunos nas notas padronizadas em 15,25 e 11,61 pontos nas provas de Matemática e Português”.
“O modelo de Escola Cívico-Militar não pretende – ao revés do afirmado na inicial – substituir o modelo tradicional de escola pública, mas complementá-lo”, escreveu o governador de São Paulo na manifestação enviada ao STF. “O papel do monitor policial militar é delimitado e não se confunde com os papéis desempenhados pelos profissionais da educação”, afirmou ainda.
Ratinho Júnior destacou que o Paraná é o estado com mais escolas cívico-militares no país, com 312 unidades. Também refutou “militarização” dos alunos ou interferência dos policiais nos planos de ensino das escolas, que continuam condizentes com as diretrizes nacionais.
“O Programa das Escolas Cívico-Militares não tem viés antidemocrático. Longe disso: busca promover e concretizar diversos valores indispensáveis para a vida em sociedade e para a construção de uma comunidade escolar tolerante e plural”, escreveu na manifestação ao STF.
“Por não se tratar de militarização, nem de incentivo à carreira militar, não há como dizer que o modelo implique violação ao direito de escusa de consciência ou à liberdade das crianças e adolescentes. Acrescente-se, ainda, que a maioria das escolas públicas permanece sob o regime tradicional, resguardando-se a escolha de pais, responsáveis e estudantes que, eventualmente, discordem do modelo”, afirmou o governador do Paraná.
Instituições e entidades que pedem o fim das escolas cívico-militares no STF:
- PT
- PSOL
- PCdoB
- Defensoria Pública de SP
- ONG Centro Santo Dias
- IBCCrim
- Advocavia-Geral da União (AGU), do governo Lula
- Ministério da Educação
- Ubes
- Sindicato de especialistas da educação
- Instituto Vladimir Herzog
- Coletivo MP Transformador
- Ação Educativa
- Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped)
- Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca)
- Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes)
- Instituto Campanha Nacional pelo Direito à Educação
- Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (Repme)
- Clínica de Políticas Públicas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Abc (CPPDH/UFABC)
- Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais (Anajudh-Lgbti)
- Ministério Público do Paraná
- Defensoria Pública do Paraná
- Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná
- Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)
- Defensoria Pública da União (DPU)
- Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)
Quem defendeu a continuidade das escolas cívico-militares no STF:
- Governador Tarcísio de Freitas
- Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp)
- Governador Ratinho Júnior
- Assembleia Legislativa do Paraná
- Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul
- Tiago Souza Santos, cidadão e advogado
A primeira versão desta reportagem informava que 27 órgãos públicos federais, ONGs, associações e entidades estavam envolvidas nas ações contra as escolas cívico-militares. Na verdade, são 26, conforme lista publicada ao final do texto.
Corrigido em 14/10/2024 às 18:02