O fotógrafo Evandro Teixeira tinha 37 anos quando, cobrindo as consequências do golpe militar no Chile, deu de cara, por detrás das grades do Estádio Nacional, em Santiago, com Vladimir Salamanca, 15.
Neste domingo (10), os dois se reencontraram na capital do Chile na abertura da exposição de Teixeira no Museu da Memória, evento que integra os atos que recordam os 50 anos do golpe militar que levou Augusto Pinochet ao poder. Teixeira tem hoje 87 anos, e Salamanca, 65.
“Estão nos tratando mal, avisem ao mundo”, disse o menino Salamanca quando Teixeira o enquadrou junto a outros prisioneiros num dos vestiários do estádio. Entre os companheiros que aparecem na imagem está seu irmão Gerardo, hoje desaparecido. Ambos ficaram presos por 23 dias, e o adolescente sentia muita dor nos dentes que haviam sido quebrados a pancadas por um militar.
Salamanca não tinha ideia do que havia acontecido com o fotógrafo e com as fotos até os anos 1980, quando uma pessoa conhecida viu uma delas num cartaz de uma exposição de Teixeira na Alemanha e o reconheceu. A foto estava um pouco borrada, mas Salamanca recebeu recentemente da historiadora Pamela Carrasco Morales um registro feito por Teixeira em que ele e Gerardo aparecem de modo muito mais nítido.
“Essas fotos me trazem muita emoção, é claro, sobretudo porque nelas está meu irmão, que depois disso desapareceu e nunca mais soubemos dele”, diz Salamanca à Folha, em entrevista realizada no colégio público onde hoje ele dá aulas de história no ensino médio.
Os irmãos foram presos no dia 16 de setembro de 1973, cinco dias depois do golpe de Estado. “Foram buscar jovens nas comunidades mais humildes de Santiago. Chegaram à minha. Era um domingo de manhã. Por meio de alto-falantes, avisaram que todos deveriam sair e levaram só os mais jovens”.
Salamanca conta que, quando o ônibus chegou ao Estádio Nacional, viu a entrada pelo túnel escuro e previu que os soldados distribuíam vários golpes nos presos. “Resolvi que não ia levar nenhuma porrada e corri para o gramado. Mas aí fiquei paralisado e, no mesmo momento, atiraram, na minha frente, em dois outros companheiros. Um impulso me fez retroceder.”
Apertados no vestiário norte do estádio, recebiam surras. Alguns eram levados a interrogatórios, outros pediam para ir ao banheiro e nunca mais voltavam. Salamanca diz que chorava à noite por não conseguir dormir e por sentir muitas dores na boca —um militar havia atingido toda a parte superior de seu maxilar, que teve de ser reconstruída completamente após o fim do cativeiro. “Umas poucas vezes subíamos às arquibancadas, e aí tínhamos a ideia de quanta gente estava presa. Eram umas 25 mil pessoas, estava lotado.”
No dia 8 de outubro, Salamanca foi libertado. “Eu sou muito cético, e não acho que foi nada mais que o acaso que me fez conseguir sair daí. De repente acharam que eu era muito jovem, ou simplesmente escapei de morrer ali por puro acaso. O que sei é que sempre achei que era minha obrigação continuar falando, criando memórias, contando o que aconteceu no Chile. Também pelo meu irmão, que minha mãe continuou procurando e morreu sem saber mais nada dele.”
Indagado sobre o que pensava nos dias de Estádio Nacional, Salamanca diz que era muito difícil teorizar naquelas circunstâncias. “Eu apenas pensava em sobreviver. Todos ali pensavam, eu acho. Depois, com o passar dos anos, penso que foi um momento de loucura ideológica.”
“Não sou de guardar rancores a vida toda nem de me amargurar. Penso no meu irmão todos os dias, mas nele antes da prisão. Não penso com tristeza e nostalgia. Quero Justiça por ele e queremos, como família, saber a verdade, mas também saí dali querendo viver, fazer outras coisas, estudar. E é por isso que estou aqui, dando aulas de história e querendo que esses meninos [aponta para os garotos que jogavam bola na quadra; era hora do recreio] saibam em que país nasceram.”