“Se você não compreende inglês, isso é problema seu.” Foi assim que a gerente de um McDonald’s do Québec respondeu à cliente que reclamou de ser atendida em inglês na província canadense cuja língua oficial é o francês.
A cena, gravada na semana passada, viralizou no país, e evidencia uma guerra cultural que tenta reverter o declínio da influência da língua francesa num mundo dominado pelo inglês.
Atualmente, o francês é a quinta língua mais falada no mundo, atrás de inglês, mandarim, hindu e espanhol. Cerca de 321 milhões de pessoas falam o idioma no mundo, a maioria na África, onde ex-colônias da França seguem a cartilha da língua de Molière nas escolas.
Como o continente africano é aquele onde a população mais cresce no mundo, há previsões de que o francês se torne a primeira ou segunda língua mais falada do planeta em 2050. Ao mesmo tempo, a prevalência do inglês nos meios digitais e científicos fez o francês perder espaço nas últimas décadas.
Com dois idiomas oficiais, inglês e francês, o Canadá é o campo de batalha mais agudo dessa disputa, como sugere o episódio na loja de fast food. Mas é no mundo acadêmico que a erosão do uso do francês, e as medidas para revertê-lo, escalaram no Québec.
Em outubro, o governo da província anunciou o aumento das taxas de matrícula universitárias para estudantes de outras partes do país e do mundo interessados em estudar no Québec, território de resistência do francês no Canadá.
A medida, evocada como uma proteção à língua francesa, é um golpe nas universidades anglófonas da província, que concentram 38% dos estudantes estrangeiros da região, entre elas, a Universidade McGill, em Montreal.
A cidade é sede da Agência Universitária de Francofonia (AUF), uma organização de cooperação internacional sexagenária que mantém uma das maiores redes universitárias do mundo, com cerca de mil instituições de ensino e pesquisa de 120 países.
A entidade escolheu a cidade do Québec como palco da terceira edição de sua Semana Mundial de Francofonia Científica, no início de novembro. O evento promove a produção científica em língua francesa e o intercâmbio de pesquisadores e estudantes membros da francofonia —nome dado à comunidade de países e pessoas que falam francês.
A AUF e sua rede de pesquisadores são um espelho das mudanças pelas quais o francês passa mundialmente. E, nos corredores do encontro mundial de francofonia científica, há mais estudantes africanos que franceses. O próprio reitor da AUF é o primeiro africano a ocupar o posto em 60 anos.
Ex-ministro da Educação Superior e Pesquisa Científica da Tunísia, Slim Khalbous, reafirma essa diversidade da língua. “A França faz parte do mundo francófono, mas o mundo francófono é muito mais diversificado do que a França.”
Para ele, a promoção do francês não pode ser feita em oposição ao inglês. “Nosso problema não é o inglês, mas os valores que cada idioma carrega e que nos dão uma visão do mundo e uma interpretação das ciências e do conhecimento”, afirma. “O risco de termos uma ciência só em inglês é ter apenas uma visão do mundo.”
Mais do que a visão única do mundo, ministros da Educação e reitores de universidades francófonas reclamam dos prejuízos concretos que o domínio do inglês impôs à ciência produzida em francês, relegada à periferia dos debates científicos globais.
Entre 1995 e 2019, a percentagem de artigos acadêmicos publicados em inglês aumentou de 64% para mais de 90% em todo o mundo. Por sua vez, o francês diminuiu de pouco menos de 10% para 1%.
Para Jean-François Gaudreault-Desbiens, vice-reitor da Universidade de Montreal, a política canadense de aumentar taxas para estudantes internacionais é reativa e pouco eficiente. “O inglês é a língua da ciência em muitos domínios, e isso não vai mudar a curto prazo, mas há muitas medidas que podem ser tomadas para garantir que a concorrência seja um pouco mais igualitária”
Entra elas, cita, está o livre acesso às investigações do mundo francófono e a construção de parcerias entre países francófonos e não-francófonos, como o Brasil, para a promoção do plurilinguismo nas ciências que, segundo o vice-reitor, é uma forma de garantir também a diversidade ideológica no campo científico.
“Além disso, os algoritmos de busca privilegiam conteúdos em inglês, e precisamos analisar esses parâmetros para facilitar a descoberta de produções francófonas, numa preocupação que se aplica a todas as outras línguas que não o inglês.”
Durante o encontro de autoridades do evento de francofonia científica, ministros de Estado de países tão diversos como Camboja, Marrocos, República Democrática do Congo e França fizeram coro à necessidade de solidariedade entre os países da francofonia para difusão da inovação científica como forma de desenvolvimento econômico.
“Precisamos de um novo contrato social para a diversidade linguística na produção científica que permita o desenvolvimento econômico sustentável dos nossos países”, afirmou Abdel Baba-Moussa, secretário-geral da Conferência de Ministros da Educação da Francofonia (Confemen), com sede no Senegal.
A resistência de francófonos ao imperativo global do anglicismo vai além de confusões nos balcões de lojas de fastfood e da ampliação do alcance da produção científica em francês. Nesta semana, o presidente da França, Emmanuel Macron, inaugurou a Cidade Internacional da Língua Francesa, um centro dedicado à francofonia instalado no castelo de Villers-Cotterêts, cidade natal de Alexandre Dumas, autor de clássicos como “Os Três Mosqueteiros” e “O Conde de Montecristo”.
O local é simbólico para a língua francesa. Foi lá que, em 1539, o rei François 1º assinou a ordem que tornou obrigatório o uso da língua francesa nos atos de administração e justiça, em substituição ao latim.
Durante o discurso de inauguração, Macron se posicionou contra a linguagem neutra de gênero, considerada uma invenção anglófona, e cuja adoção, prevista em projeto de lei, foi derrotada no Senado francês. “A força da sintaxe [da língua francesa] reside no fato de ela não ceder aos caprichos da época. Nesta língua, o masculino é o neutro.”