A estreia do longa-metragem “Simón” em diversas cidades da Venezuela, neste mês, causou estranhamento em quem vive no país e em parte da vasta diáspora venezuelana. O filme, afinal, faz uma crítica aberta a Nicolás Maduro e à estrutura de repressão do regime.
O roteiro gerou uma espécie de expectativa de que Caracas não permitiria a exibição do longa —essa não seria a primeira censura do regime. Mas o filme escrito e dirigido por Diego Vicentini, venezuelano que desde 2009 vive nos Estados Unidos, surpreendeu ao receber o “selo” de filme venezuelano e a permissão para exibição no país.
Entre imigrantes, jornalistas e acadêmicos surgiu uma pergunta que, obviamente, ficará sem resposta oficial: qual é o cálculo para a censura?
“Se censuram ‘Simón’ —clássica estupidez de regimes autoritários—, o converteriam em um êxito imediato”, disse Leonardo Padrón, autor de algumas das mais celebradas telenovelas do país, no X (antigo Twitter). Outros analistas opinaram que a permissão se deu pelo fato de o filme falar sobre um movimento que tentou, mas não conseguiu, derrubar a ditadura, dando ao regime o suposto trunfo de mostrar que venceu.
A obra fictícia narra a história de Simón, um estudante de engenharia e líder de um grupo de universitários que vão às ruas para protestar contra o regime ditatorial que vigora no país. O pano de fundo dialoga com o que se passou na Venezuela em 2017, ano de intensos protestos contra Maduro que resultaram na expansão da máquina de repressão.
Simón e seu melhor amigo, Chucho, são presos, acusados de atos terroristas. Após dias em um lugar insalubre onde é torturado ao lado de outros homens, Simón é liberado e parte para o exílio —vai a Miami e opta por pedir asilo nos EUA, uma decisão com a qual não consegue lidar durante toda a história.
De certa forma, o caraquenho se sente acovardado por ter deixado os amigos e o país para trás. É uma culpa que reflete o sentimento do próprio diretor, Diego Vicentini. “Tive uma vida privilegiada, de fora [do país], e podia ter me afastado. Mas me frustra muito o sofrimento causado, os jovens mortos e as famílias separadas pelo governo.”
Vicentini realizou o longa com uma equipe majoritariamente venezuelana —o ator Christian McGaffney, que interpreta Simón, também nasceu no país—, mas filmou todas as cenas nos EUA.
“Simón” é hoje reconhecido como um filme venezuelano depois de, contra as expectativas, obter o certificado do CNAC, o Centro Nacional Autônomo de Cinematografia venezuelano. Ainda assim, o instituto incluiu uma cláusula ao certificado na qual sugere que o conteúdo do filme poderia violar a Lei Contra o Ódio aprovada em 2017 no país —e cuja punição varia de dez a 20 anos de prisão.
O filme também venceu seis categorias do Festival de Cinema Venezuelano, projeto independente por ora sem interferência do regime, entra elas a de melhor filme e de melhor direção.
A obra levou aos cinemas de Caracas e de outras cidades um relato da chamada “porta giratória” da ditadura —a prática de prender grupos de opositores e depois liberá-los como forma de os desmoralizar e amedrontar. Também jogou luz em algumas das denúncias que embasam investigações sobre supostos crimes contra a humanidade.
Os atos do regime em 2017 são investigados desde 2021 pelo TPI, o Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia, após um grupo de países —entre eles Argentina, Colômbia, Chile, Paraguai e Peru— pedir que a corte analisasse os fatos.
Vicentini diz que o filme foi pensado para o público venezuelano mas também para os não venezuelanos, os quais ele deseja que se solidarizem com a causa e conheçam as denúncias —ainda que no longa não sejam mencionados nomes como o de Maduro ou de seu antecessor, Hugo Chávez. “Como começar a curar se nem sequer houve um pouco de Justiça? Se os responsáveis por tudo isso seguem no mesmo lugar?”
“Quero que o filme funcione como um ‘proxy’, que você não tenha que viver [essa realidade], mas possa presenciar, a um nível íntimo e pessoal, o que os venezuelanos têm passado nas últimas duas décadas.”
A escolha do nome do protagonista e do filme, Simón, dialoga com a associação mais óbvia: Simón Bolívar, o símbolo da independência venezuelana. “Há muitas gerações de jovens anônimos que lutaram por nossa liberdade. Quis atribuir essa mitologia do libertador às várias gerações que lutaram pelo país e que seguirão lutando, até que chegue o momento em que seremos libertados.”
Há histórico de filmes impedidos de serem exibidos no país de Maduro. Em 2017, o longa “El Inca”, sobre a vida pessoal do boxeador Edwin Valero, figura muito próxima a Chávez, foi proibido. Dois anos depois, em 2019, “Infección”, sobre um apocalipse zumbi após uma epidemia negligenciada pelo governo, não recebeu permissão para estrear.
“Simón” também foi lançado nos EUA e teve sessões em capitais da América do Sul como Buenos Aires, Santiago, Lima e Quito. Ainda não há planos de vir ao Brasil —terceiro país da América Latina que mais recebe venezuelanos, atrás de Colômbia e Peru—, ainda que a equipe tenha vontade. De 22 a 29 de outubro, a obra poderá ser alugada online.