O desempenho ruim dos estudantes brasileiros na última edição do Pisa, exame internacional feito com jovens de 81 países e economias, tem uma série de causas relacionadas principalmente com o baixo nível de exigência e a ideologização do ensino, de acordo com especialistas em educação consultados pela Gazeta do Povo.
O país ficou em 64º lugar em matemática, 53º em leitura e 61º em ciências entre as 81 nações avaliados. O desempenho é pior que o de países da América Latina como México, Costa Rica, Uruguai e Chile. As pontuações estão muito abaixo da média geral dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), responsável pela avaliação: os estudantes do Brasil alcançaram pontuação 379 em matemática, 410 em leitura e 403 em ciências; a média dos alunos da OCDE foi de 480 em matemática, 482 em leitura e 491 em ciência.
“Precisamos mudar urgentemente. Não podemos continuar fazendo com que os nossos estudantes passem por anos e anos nas escolas e não aprendam a ler, escrever e contar do mesmo modo que seus pares em outros países fazem. As crianças brasileiras têm todo o potencial e todas as possibilidades, como quaisquer outras crianças do mundo todo”, afirma Renan Sargiani.
Para ele, “o problema não está lá aos 15 anos, quando eles fazem o Pisa, mas muito antes”. “As dificuldades começam desde a educação infantil, nos anos iniciais do Fundamental, quando as crianças têm dificuldades acentuadas de alfabetização”, acrescenta.
Sargiani critica a estagnação do Brasil, que não promove mudanças radicais mesmo com os seguidos resultados negativos na educação. “Neste período de mais de 10 anos que a gente tem visto o resultado do Pisa estagnado, o que a gente observa é que as políticas eram muito próximas, muito parecidas, não houve grandes modificações. A gente tinha relatórios, por exemplo, da Academia Brasileira de Ciências de 2011 apontando que as políticas sobre alfabetização estavam em descompasso no Brasil com o que diz a ciência mais contemporânea, com o que dizem as evidências mais fortes sobre como as crianças aprendem a ler e escrever e como nós podemos ensinar. E essas mudanças ainda não têm chegado à sala de aula.”
O especialista recorda que países como França, Estados Unidos, Portugal e Chile, que adotaram políticas educacionais baseadas em evidências, têm colhido como frutos a melhoria nos resultados de indicadores internacionais. “E eu acho que esse é um dos motivos pelos quais o Brasil ainda não tem melhorado. O fato de não seguir as evidências e de não ter consistência em suas políticas”, afirma.
A ruptura de políticas públicas, para ele, também é um motivo da estagnação. “Às vezes a gente começa a alinhar o caminho, e aí troca de governo, e as coisas mudam de novo e ficam cada vez mais difíceis. Aqui no Brasil a gente tem um exemplo de Ceará e de Sobral, mais especificamente, no qual as políticas têm, mesmo que se troque de governo, permanecido com o mesmo foco. E aí os resultados têm melhorado consistentemente.”
Falta de exigência e ideologização são fatores principais do resultado desastroso
Para a educadora Anamaria Camargo, presidente e diretora-executiva do Livre pra Escolher, um dos problemas da educação no Brasil é a falta de responsabilização das instituições.
“As escolas não têm nenhum sistema de accountability. Não importa o nível de desempenho que os alunos tenham: não há nenhum sistema que responsabilize sejam os gestores, seja o secretário de Educação. Não há nenhum preço pago pelo erro. Ao contrário. Normalmente, quando os alunos estão mal, não aprendem, isso é usado como uma justificativa para receber mais recursos. O incentivo é perverso nesse sentido. Não há nenhum estímulo, por exemplo, para professores que sejam dedicados, bem preparados e que trabalhem junto com o aluno quando você sabe que um professor que trabalha na mesma escola mas não é dedicado, é mal preparado, recebe o mesmo salário. O risco para os dois de perder seu emprego na escola é exatamente o mesmo – ou seja, nenhum. Os estímulos estão errados”, critica.
Na visão dela, o grande problema do sistema educacional brasileiro é que ele “existe para manter a si mesmo e aos grupos de interesse”. “O estudante é uma mera desculpa para que o sistema receba recursos. Quando o resultado não vem, nada muda. O pagador de impostos continua sendo obrigado a sustentar o sistema que não funciona”, afirma.
Também há um grave problema, segundo ela, na seleção e formação de professores. “A gente continua selecionando os professores dentre os piores alunos do ensino médio. A gente sabe disso quando a gente vê a nota de corte do Enem para um curso de pedagogia. A pessoa, muitas vezes um analfabeto funcional, chega à faculdade e vai receber um curso de formação docente que é muito deficiente, frequentemente baseado em pseudociência. Ainda mais em época de ideologização, de marxismo identitário e de ‘wokismo’. Esse é o professor que sai das faculdades. E ele ainda chega a uma sala de aula com alunos despreparados, que vêm com gaps enormes de aprendizado de anos atrás”, observa.
Formação de professores no Brasil precisa voltar ao feijão com arroz, diz especialista em didática
Para Thiago Machado, especialista em didática e formação de professores e mestre em Ensino de Ciências pela UnB, a fraca formação dos professores é, hoje, o maior problema da educação brasileira.
“Se a gente olha para os países que estão no topo do Pisa, e a gente enxerga as políticas que foram feitas nos últimos anos que levaram aos resultados, a gente vê um investimento pesado na formação de professores. Isso não significa investimento na forma de dinheiro. A gente ouve muito falar que investir mais dinheiro na educação faria com que ela melhorasse. Não é nesse sentido. É na qualidade, naquilo que é ensinado para os professores como ferramenta para eles trabalharem na sala de aula”, explica.
Ele recorda que, nas décadas de 1960 e 1970, começaram a surgir no Brasil correntes da pedagogia que condenavam técnicas “da chamada ‘educação tradicional'” de forma indistinta, querendo fazer tábula rasa da metodologia que era aplicada.
“Realmente havia alguns problemas em alguns pontos, mas isso não pode ser generalizado. Tem aquela caricatura da palmatória, do professor repressivo. Nessa época, a didática começou a ser jogada no lixo. A didática é a disciplina que fala de métodos e técnicas dentro da sala de aula. As discussões começaram a ser muito mais no âmbito social, ‘filosófico’ – e isso entre aspas, porque se fala que é filosófico, mas não é exatamente assim –, e se deixou de lado a didática, que é a disciplina que trabalha com a técnica do ensino”, comenta.
Hoje, nos cursos de pedagogia, a didática tornou-se uma questão irrelevante, o que, para Machado, cria um exército de professores desprovidos de ferramentas essenciais ao exercício de sua profissão. “Qualquer profissão precisa de técnica. Um médico, por exemplo, quando faz um diagnóstico, tem à disposição uma ‘caixinha de ferramentas’, de técnicas. A depender do diagnóstico, ele vai buscar uma técnica para o seu caso”, observa. “Isso deveria também valer para professores. Eles precisam de técnicas para avaliar o estudante e, a partir dessa avaliação, buscar a melhor ferramenta. Isso, hoje, não existe na educação brasileira. A formação de professores não ensina isso. Esse é o grande problema.”
Assim como Sargiani, ele critica a falta de base em evidências para a escolha das metodologias educacionais no Brasil. “Fala-se muito hoje sobre o risco de negar a ciência, mas se a gente pegar o que a neurociência traz hoje a respeito da educação, e a gente comparar com o que se fazia na chamada educação tradicional, há muita consonância em vários aspectos – e discordância do que hoje se prega como o que seria bom na educação.”
Um dos exemplos mais claros disso, segundo ele, é a demonização que se faz da memorização. “A gente ouve muito falar que a memorização, que chamam de uma forma pejorativa de ‘decoreba’, é ruim. Estão querendo deixar de lado a principal habilidade para que alguém possa pensar ou aprender alguma coisa. Eu não tenho como aprender nada sem ter memória, porque a memória é onde guardamos toda a matéria-prima do pensamento”, comenta. Para Machado, é “extremamente prejudicial para a aprendizagem condenar a memória”.
Ele critica, além disso, a ênfase no que se chama de “pensamento crítico”. “A gente tem uma prova do Enem que demanda que os alunos resolvam problemas que às vezes nem os próprios especialistas da área conseguem resolver”, diz. “Como é que você quer que um aluno tenha senso crítico se ele não sabe nem ler direito, se ele não tem o desenvolvimento da linguagem suficiente nem para se expressar direito? O máximo que a gente vai ter são reproduções de argumentos que alguém já pensou para eles. Isso não é pensamento crítico”, conclui.