A derrubada de Bashar al-Assad significa o fim de símbolos de uma ditadura familiar de mais de 50 anos, e uma das imagens mais marcantes foi a de centenas de pessoas entrando numa fortaleza do regime, a temida prisão de Saydnaya.
A queda de Assad emocionou Omar Alshogre, 29, um conhecido ex-detento desse presídio. “É a coisa mais bonita ver um ditador cair depois de ter torturado e matado sua família”, diz à Folha, por telefone.
Hoje ativista de direitos humanos, Alshogre fala da Suécia, onde se refugiou em 2015 após escapar de Saydnaya —um labirinto de túneis, celas, valas comuns e aparatos de tortura conhecido como “o açougue da humanidade”. Rebeldes libertaram milhares de presos políticos nos últimos dias, um dos eventos mais importantes no contexto da queda de Assad. Circulam imagens de sírios reencontrando parentes dados como mortos havia décadas.
“Eu sonhei com isso por tantos anos e trabalhei tanto por isso”, afirma Alshogre. “Nunca mais o regime vai prender pessoas em Saydnaya, e isso faz com que eu recupere um pouco da minha fé na humanidade.”
Construída nos anos 1980, cerca de 30 quilômetros ao norte de Damasco, Saydnaya era a principal prisão política de Assad. Segundo a Anistia Internacional, tinha capacidade para encarcerar cerca de 20 mil pessoas.
A fama de açougue vinha das frequentes execuções perpetradas pelo regime, sem julgamento. Ainda de acordo com a Anistia, foram cerca de 13 mil mortos no local, apenas no período de 2011 a 2016, já em meio à guerra civil que se instaurou no país.
Os vídeos divulgados nos últimos dias por ativistas e pela imprensa internacional mostram celas sem janela, corpos esquálidos e um maquinário macabro de tortura com prensas de concreto e incineradores.
Alshogre tinha 17 anos quando foi preso, em 2012. Soldados apareceram um dia na casa de sua tia e o detiveram com três primos —dois deles mais tarde morreram no cárcere. Diz que nunca soube a razão da prisão.
Passou por dez instalações até chegar ao inferno de Saydnaya. A primeira coisa que lhe chamou a atenção foram os gritos dos prisioneiros sob tortura, pedindo para morrer. “É algo que quebra qualquer pessoa.”
Ele foi espancado, eletrocutado e teve as unhas arrancadas pelos soldados de Assad. Só conseguiu sair em 2015 quando sua mãe conseguiu juntar US$ 15 mil (hoje, o equivalente a R$ 90 mil) para subornar o regime.
As imagens que circulam agora, nas palavras de Alshogre, são insuficientes para expressar o que aquele lugar significa. O terror, afirma, não está nas más condições sanitárias nem nas celas abarrotadas, onde prisioneiros dormiam de pé. “Era o grito das pessoas sendo torturadas, o medo entre as paredes, o fato de que você sabia que poderia morrer a qualquer momento, que nunca mais veria sua família, que não respiraria nunca mais o ar fresco.”
O mundo tinha alguma ideia do que acontecia. Já em 2013 um militar sírio conhecido pelo codinome Caesar havia contrabandeado milhares de fotografias mostrando as torturas e os prisioneiros desnutridos.
Há um gênero literário bastante consolidado na região, inclusive, dando conta da realidade nas prisões. Um exemplo é o romance “A Concha”, publicado em 2018 pelo sírio Mustafa Khalifa e traduzido para o inglês.
Alshogre também dedicou sua vida, desde a soltura, a denunciar os crimes do regime. Estudou nos Estados Unidos e colaborou com uma série de grandes organizações humanitárias em prol dos presos políticos. Daí sua frustração com a comunidade internacional, que ele acusa de não ter feito o bastante. O fim de Assad tardou quase 14 anos desde o início da guerra em 2011 —e custou a vida de mais de meio milhão de pessoas, pelas estimativas.
“Todas essas democracias falharam”, declara Alshogre, que voltou a essa posição mais de uma vez durante a conversa com a reportagem. “Eles deixaram que nós sofrêssemos em silêncio, que fôssemos torturados em silêncio.”
Há agora bastante preocupação, fora da Síria, quanto ao futuro do país. A facção que derrubou Assad, chamada HTS (Organização para a Libertação do Levante, em árabe), é considerada terrorista pelos EUA.
Seu líder, Abu Mohammad al-Jolani, chegou a integrar a rede Al Qaeda. Desvinculou-se dela apenas em 2016 e desde então tem se esforçado em se apresentar como uma figura moderada.
Não está claro, por enquanto, se Jolani vai cumprir as promessas de respeitar, por exemplo, o direito das minorias religiosas e das mulheres. Seu grupo tem um conhecido viés autoritário.
Para Alshogre, porém, a investida rebelde foi justamente a reação de uma população cansada de esperar que o mundo os auxiliasse. “Os sírios perceberam que ninguém se importava conosco, e agimos nós mesmos.”
Ele espera, agora, que potências estrangeiras ajudem o país a tratar dos milhares de presos políticos, que precisam de cuidados de saúde física e mental. “É a chance de melhorarem a sua reputação.”