“Minha família é de Daraa, onde começaram os protestos. Conhece?” Khair Allah Al Jamil identifica sua cidade natal com um discreto orgulho, agora que isso é possível. Daraa, próximo à fronteira com a Jordânia, é o lugar que deu início, em 2011, à versão síria da Primavera Árabe, estopim para uma guerra civil e barbaridades em série cometidas por Bashar al-Assad.
Após 13 anos de ditadura, deslocamentos forçados e “muitas, muitas pessoas ruins” pelo caminho, o engenheiro elétrico agora repete palavras antes escassas no vocabulário da Síria, como liberdade, democracia e justiça. O regime caiu.
Assad está em Moscou, e Khair, 31, em um subúrbio de Lagos, na Nigéria. Trabalha em média dez horas por dia em uma indústria química que faz detergentes. “Estou sem família. Quando não estou trabalhando, estudo alemão.” Há cinco meses faz cursos online para o aprender o idioma. “Quero chegar à Alemanha não como refugiado, mas como um profissional que interessa ao mercado.” Competência linguística é uma das principais barreiras para trabalhadores qualificados na Alemanha.
O engenheiro faz contato frequente com a Síria (“estão todos bem, obrigado”), mas apela ao repórter para saber o que se comenta sobre os imigrantes sírios na Alemanha, país que recebeu um enorme contingente deles em 2015 e 2016. Enquanto a Europa se fechava, a então primeira-ministra, Angela Merkel, surpreendeu seus conterrâneos e o mundo ao dizer que a Alemanha conseguiria absorvê-los.
Nesta semana, conservadores e extrema direita pediram que os sírios “voltem imediatamente para casa”. O atual premiê, Olaf Scholz, afirma que a discussão é prematura. “A situação ainda é muito perigosa”, afirmou o social-democrata, em entrevista à emissora ARD. “Talvez, se as coisas correrem bem, muitos dirão por vontade própria que querem participar da reconstrução de seu país.”
“Sim, todos estão felizes, muitos querem voltar. Outros já aprenderam a língua, entraram na comunidade, têm trabalho, amigos, a vida deles está na Alemanha”, pondera Khair. “Na Síria, eles não têm nada. As casas, as terras, os negócios, está tudo destruído. Se voltar, o que vão encontrar, como vão comer, como vão viver? Esse é o problema agora.”
Como muitos sírios, Khair não fugiu só da guerra, mas também de ser obrigado a se envolver diretamente nela. “Depois que você terminava os estudos, era obrigatório servir o Exército por cerca de dois anos. Eu não queria. Se eu fosse, seria forçado a entrar em batalha, entende? Iam me dar armas, e eu teria que lutar contra outros sírios. Se eu não concordasse, seria preso e depois me matariam”, conta o engenheiro.
Khair decidiu então sair da Síria, mas de uma maneira legal, com trabalho e visto. “Até porque não tinha US$ 10 mil para pagar aos coiotes.” Em 2019, após muitas respostas negativas, o engenheiro recebeu uma oferta que soava exótica, mas palpável: uma empresa de origem síria precisava de técnicos de manutenção na Nigéria. “Uma fábrica de suco em pó.” Depois foi para a de detergente.
Desde então, voltou apenas uma vez para casa. “O governo estava quebrado, acho, e inventou um sistema de multa para quem tinha deixado o país sem prestar o serviço militar. O valor diminuía quanto mais tempo você ficava fora. Esperei quatro anos para pagar menos, US$ 7.000, e passei um mês com a minha família no ano passado.”
Faltam engenheiros na Nigéria, o PIB que mais cresce na África nos últimos anos, assim como faltam médicos na Alemanha, onde a formação consome muitos anos e os salários são baixos, se comparados aos de outros países. A investida de conservadores e da extrema direita contra os imigrantes sírios já preocupa a federação de hospitais. O serviço de saúde alemão pode colapsar nas pequenas cidades sem os profissionais estrangeiros.
Após a queda de Assad, o Ministério do Interior interrompeu a análise de cerca de 40 mil pedidos em aberto. Políticos da CDU, sigla conservadora que lidera a corrida eleitoral no país, pedem revisão inclusive das permissões de residência já concedidas. Emulam, de maneira mais polida, a xenofobia que a extrema direita escancara e que atrai votos. A AfD, sigla extremista em ascensão no país, está em segundo lugar nas pesquisas.
Khair, porém, mantém seu plano de mirar a Alemanha. “Estou na minha idade ativa. Já tenho alguma experiência. Agora só falta conseguir falar alemão.”