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Entregar comida é ocupação mais letal em Nova York – 16/01/2024 – Mundo

Após a banda de metais guardar seus instrumentos, Sergio Solano, 39, e outros dois entregadores de comida levam uma bicicleta branca até uma passarela próxima à sede das ONU em Nova York.

Um colega de trabalho —ou “compañero”, como eles se autodenominam—, havia morrido menos de duas semanas antes, em setembro, em mais um acidente de bicicleta nas ruas de Manhattan. Entregar comida tem se mostrado uma ocupação letal para muitos desses entregadores.

Pedalando a qualquer hora, eles o tempo todo correm o risco de ser atropelados, sofrer acidentes ou ser vítimas de crimes.

A bicicleta tingida com tinta spray prestava homenagem a Félix Patricio Teófilo, um imigrante mexicano que, como eles, ganhava a vida entregando comida. Eles a prenderam na grade de metal perto da interseção da Rua 47 e da Primeira Avenida, onde ele morreu.

Com essa marcha solene sob a garoa, Solano encerrava uma noite de luto, cumprindo o que passou a ver como uma missão: chamar a atenção para indivíduos cujas vidas foram relegadas às sombras, mesmo que depois da morte deles.

“Nunca pensamos que estaríamos organizando vigílias”, diz Solano. “Esse nunca foi nosso objetivo.”

Há pouco mais de três anos, Solano e parentes que também são entregadores de comida começaram o “El Diario de Los Deliveryboys en La Gran Manzana” —algo como o jornal dos entregadores de delivery da Grande Maçã, um dos apelidos de Nova York—, uma página no Facebook com o objetivo de reunir e informar pessoas que atuam no ramo.

A página funcionaria como uma rede de apoio online, um espaço para alertar sobre roubos de bicicletas, acidentes de trânsito e encontros discriminatórios relatados por imigrantes de língua espanhola que enfrentam a agitação urbana para satisfazer os desejos de comida para viagem dos nova-iorquinos.

Logo após a página ser criada, ficou claro para Solano que o projeto contaria uma história maior, sobre os “compañeros” que morrem regularmente no trabalho. Desde que o projeto surgiu, no final de 2020, mais de 40 entregadores faleceram de acordo com a contagem mais recente de Solano.

No caso de Patricio, ele bateu a cabeça em uma calçada, sem capacete.

Entregadores de comida foram celebrados em Nova York quando a pandemia de Covid-19 levou os moradores da cidade a se refugiarem dentro de suas casa e os serviços de delivery se tornaram essenciais.

Na época, aplicativos de entrega ofereciam uma renda viável para aqueles que tinham sido demitidos de seus empregos ou tiveram suas horas reduzidas, e também para aqueles cujo status de imigração complicava a obtenção de ajuda do governo.

Conforme a pandemia se arrastava, os perigos do trabalho então em alta demanda se tornaram evidentes. Ativistas formaram sindicatos e pressionaram por melhores salários e proteções, um esforço que continuou até 2023. Sob pressão, a cidade estabeleceu em outubro daquele ano, um salário mínimo mais alto para os entregadores de aplicativos, começando em cerca de US$ 18 (quase R$ 90 no câmbio atual) por hora.

Ainda assim, o risco para muitos trabalhadores tem ido além da questão financeira. Na página dos Deliveryboys, uma sequência de fotos traz os nomes e rostos dos falecidos.

A maioria desses entregadores é imigrante do México ou da Guatemala. Juntos, eles integram uma força de trabalho estimada em 65 mil só na cidade de Nova York.

O trabalho se tornou um dos mais letais da cidade. Um relatório municipal publicado em novembro de 2022 afirmou que a taxa de mortalidade entre os entregadores de comida que não usam carro foi de 36 mortes por 100 mil trabalhadores de janeiro de 2021 a junho de 2022. Essa taxa superou a dos trabalhadores da construção civil (7 mortes por 100 mil), a indústria mais letal historicamente.

Funerais, vigílias, aniversários de morte e réquiens têm sido organizados e inscritas digitalmente na memória da comunidade pela página “El Diario de Los Deliveryboys en La Gran Manzana”.

Muitos entregadores morreram em acidentes de trânsito enquanto estavam trabalhando. Algumas das mortes não estavam, porém, relacionadas ao trabalho. Outras, como a de Francisco Villalva, consistiram em assassinatos.

Em março de 2021, um ladrão que queria roubar a bicicleta de Villalva o baleou em um parque perto da Rua 108 e da Terceira Avenida, em Manhattan. Villalva, de Xalpatlahuac, Guerrero, no sudoeste do México, tinha 29 anos.

Dois dias depois, a página fez uma transmissão de vídeo ao vivo do local do assassinato pedindo apoio para a família de Villalva. Parentes que apareceram no vídeo falaram tanto em espanhol quanto em náuatle, uma língua indígena falada em partes do México. (Até o momento da publicação deste texto, o vídeo tinha mais de 132.000 visualizações.) Eles também pediram justiça.

“Infelizmente, outro ‘compañero’ perdeu a vida fazendo esse trabalho”, disse César Solano, sobrinho de Sergio Solano e também administrador da página, em espanhol, relatando a notícia como se fosse um repórter de televisão.

O número de seguidores da página Deliveryboys aumentou de centenas para milhares, conferindo à plataforma algum poder de mobilização.

“Por quase um mês, fizemos protestos”, diz Sergio Solano. “Fizemos vigílias após vigílias. As pessoas vinham oferecer comida ou tocar música ao vivo. Em todos os dias que fazíamos algo, várias pessoas apareciam.”

A morte de Villalva havia mobilizado a comunidade. ‘Compañeros’ pausaram seus aplicativos de entrega para comparecer aos eventos. Um padre católico foi chamado para fazer orações. Familiares e amigos providenciaram comida. Outros trouxeram instrumentos. Um grupo escreveu uma balada folclórica mexicana em homenagem a Villalva, contando sua jornada em Nova York até sua morte.

O assassino, identificado como Douglas Young, 41, foi capturado e eventualmente condenado por assassinato. Em abril, o criminoso, um morador do Queens, foi condenado a cumprir 41 anos de prisão perpétua.

Desde a morte de Villalva, a página tem ajudado a garantir que cada ‘compañero’ morto seja lembrado —uma prática que se tornou quase ritualística e remete às despedidas de policiais que são mortos no cumprimento do dever.

No vigília de Patricio, César Solano, 22, transmitiu ao vivo a performance da banda na calçada. Policiais que atenderam a uma reclamação de barulho deram a eles 10 minutos para tocar a homenagem.

Alguns acham as postagens infinitas da página invasivas. Mas Sergio Solano afirma que as homenagens aos entregadores mortos são “uma despedida final adequada”, capazes de dar aos seus entes queridos a chance de cumprir o ritual de luto de longe. “Mostramos que eles [os entregadores] também eram amados aqui”, diz ele em espanhol.

Fonte: Folha de São Paulo

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