A preocupação com crimes de guerra no conflito entre Israel e Hamas, que completa três semanas no sábado (28), chegou a instâncias como a Secretaria-Geral da ONU nos últimos dias.
Na terça-feira (24), António Guterres, que ocupa o posto, afirmou estar “profundamente preocupado com as claras violações do direito humanitário internacional” na guerra. “Num momento crucial como este, é vital ter princípios claros —começando pelo princípio fundamental de respeitar e proteger os civis”, afirmou o português diante do Conselho de Segurança da ONU.
Os intensos bombardeios israelenses no território palestino controlado pelo Hamas já mataram ao menos 7.028 pessoas, de acordo com o Ministério da Saúde local, incluindo 2.913 crianças. Os ataques do grupo terrorista em Israel no último dia 7, por sua vez, fizeram pelo menos 1.400 vítimas, segundo Tel Aviv, a maioria formada por civis.
O que define o que é crime em uma situação como essa são as regras evocadas por Guterres, que remontam às Convenções de Haia, de 1899 e 1907, e às Convenções de Genebra, que aconteceram entre 1864 e 1949. Também conhecido como direito de guerra, esse conjunto de leis estabelece limites a conflitos armados e tem o objetivo de proteger civis, combatentes e o meio ambiente uma vez que os combates já estão em curso.
Um dos fundamentos dessas regras é a proteção aos civis. Em termos gerais, combatentes são alvos legítimos, desde que os ataques sejam discriminatórios —ou seja, com distinção entre aqueles que estão engajados nos combates e os que não estão. Civis, trabalhadores humanitários e profissionais de saúde estão protegidos, assim como combatentes que foram feridos, abandonaram as armas ou viraram prisioneiros de guerra.
No último dia 7, o Hamas rompeu o bloqueio à Faixa de Gaza e ao menos 1.500 integrantes do grupo terrorista se infiltraram o sul de Israel, onde realizaram massacres e fizeram mais de 200 reféns, que em grande parte ainda estão no território palestino. Dos 1.400 mortos naquele dia, de acordo com Tel Aviv, a maioria era formada por civis, e entre as vítimas havia crianças e idosos.
Após o ataque, Israel começou uma de suas maiores campanhas aéreas em Gaza. Só na primeira semana, foram 6.000 bombas lançadas em um dos territórios mais densos do mundo, onde vivem 2,3 milhões de palestinos.
Entre os mais de 7.000 mortos em Gaza, 54 são profissionais de saúde e trabalhadores humanitários, de acordo com o OCHA (Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários). Há ainda 1.600 pessoas desaparecidas, incluindo pelo menos 900 crianças, que podem estar sobre os escombros. Os bombardeios afetaram também 24 ambulâncias e 35 unidades de saúde, incluindo 20 hospitais —que estão sob proteção do direito internacional humanitário.
Em comparação com o ataque do Hamas, os bombardeios de Israel são mais complexos à luz das leis.
Uma das principais linhas de argumentação de Tel Aviv é que o grupo terrorista usa a população palestina como escudo humano, colocando armamentos embaixo de prédios onde moram civis e em bairros residenciais.
O método de fato é vetado, mas não dá carta branca para a nação adversária bombardear indiscriminadamente a área em que está o alvo militar, de acordo com especialistas consultados pela reportagem. Ou seja, ainda que o uso de palestinos pelo Hamas para proteger arsenais seja comprovado, Israel ainda pode ser responsabilizado pelas mortes de civis, que não são considerados meros “danos colaterais”.
“A noção de dano colateral não é plenamente regulada no direito internacional”, diz Lucas Lima, professor de direito internacional da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). “Existem muitos documentos de academias militares e de órgãos dos exércitos nacionais, mas uma definição específica nunca foi acordada, embora Estados aceitem, de modo geral, sua ocorrência num conflito.”
Lesley Wexler, professora de leis de guerra na Universidade de Illinois (EUA), ressalta que as Convenções de Genebra preveem que os ataques sejam “proporcionais”. “Em vez de fornecer números, o direito internacional humanitário tem uma espécie de precedente construído ao longo do tempo e internamente, dentro das determinações de cada país”, explica.
O entendimento, porém, é conservador. Uma operação que coloque em risco centenas de civis para matar uma soldado de baixo escalão e destruir um punhado de armas antigas, por exemplo, não seria aceita como legítima. O paradigma oposto seria um ataque previamente avisado à população local para destruir uma arma com alto poder destrutivo em uma área já esvaziada, mas que pode ter algum civil remanescente.
“Deve haver uma vantagem militar incrivelmente significativa”, afirma Wexler. “Precisamos saber mais detalhes factuais da guerra atual, o que nenhum lado parece estar interessado em compartilhar no momento.”
O direito internacional humanitário, contudo, não dá direito a uma retaliação direta. “Não há disposições nas leis de guerra que digam que, se um lado se comportar ilegalmente, o outro lado tem permissão para fazer o mesmo em igual medida. São regras absolutas que não permitem a justificativa de ‘eles começaram’ ou ‘estamos apenas punindo e depois vamos parar'”, diz Wezler.
Entre os atos com mais evidências de possíveis violações às leis de guerra do lado de Israel, segundo a professora, está o bloqueio de água a Gaza. Após os ataques, Tel Aviv fez um “cerco total” à já empobrecida região e barrou a chegada de ajuda humanitária, incluindo água, alimentos e combustível.
“Não está claro para mim qual é a vantagem militar direta e concreta dessa ação. Mas, mesmo que houvesse, é difícil acreditar que superaria as consequências para os civis”, afirma Wexler.
A ação colocou em risco milhares de pessoas em tratamentos nos hospitais. Nesta quinta-feira (26), a UNRWA (agência da ONU para refugiados palestinos) afirmou que, se Gaza não receber combustível, será forçada a reduzir significativamente e, em alguns casos, a interromper as suas operações humanitárias no território. “As próximas 24 horas serão muito críticas”, afirmou a entidade.
A responsabilidade de julgar eventuais crimes de guerra é do Tribunal Penal Internacional (TPI), inaugurado em 2002. Países signatários do Estatuto de Roma, texto fundador da corte, têm obrigação de cooperar com qualquer ordem do tribunal do ponto de vista jurídico —Israel, porém, assim como as principais potências mundiais, não é signatário. A Palestina, por sua vez, é considerada um Estado membro do TPI desde 2015.