Angela Merkel, 70, está em quase todos os jornais, sites e canais de TV da Alemanha nestes dias. Nesta terça-feira (26), foi lançada oficialmente “Freiheit: Erinnerungen 1954 – 2021” (“Liberdade: Memórias 1954 – 2021”), uma extensa biografia que cobre toda sua carreira política, decisiva para Europa e para boa parte do planeta nas últimas décadas.
Impressões ácidas sobre Donald Trump e Vladimir Putin deveriam ser apenas parte dessas memórias, mas seguem pertinentes nos dias atuais. O mundo não mudou muito desde que ela deixou o poder em Berlim, em 2021. Na verdade, parece pior _e há quem pensa que parte da responsabilidade cabe a ela, Merkel, que teria sido condescendente demais com o russo, entre outras críticas
Em um momento de crise política e econômica, a Alemanha discute também seu legado doméstico. Não apenas os episódios inusitados que relata, como Trump tentando evitar apertar sua mão no primeiro encontro, mas as consequências de seus 16 anos de governo no atual estado de coisas do país.
Dois temas sobressaem: imigração e economia. Em 2015, Merkel tomou a decisão de permitir a entrada de milhares de imigrantes, que estavam sendo jogados de cerca em cerca pela Europa. Não havia alternativa, conta ela no livro, segundo excertos publicados na imprensa alemã. Nove anos depois, o país afronta o Tratado Schengen, pilar da livre circulação dentro da União Europeia, controlando o fluxo de pessoas nas próprias fronteiras.
O tema virou questão eleitoral, e a esquerda e o centro político fazem concessões para que não alimente ainda mais a popularidade de extremistas da direita. Merkel defende sua atitude à época, com um conveniente distanciamento histórico. Sobre economia, outro pilar de seu legado em que os críticos apontam muitas fissuras, ela não se furta, no entanto, a opinar sobre o momento do país.
Merkel foi a responsável pela aprovação, logo após a crise mundial de 2008, de um freio da dívida pública, versão local do teto de gastos. Pelo instrumento, a partir de 2016 o débito federal só pôde crescer 0,35% do PIB por ciclo econômico. Já os 16 estados ficaram proibidos de fazer novas dívidas.
Para muitos analistas, o freio impõe austeridade excessiva, deprimindo uma economia estagnada e carente de investimentos. Merkel concorda. “A ideia de um freio de dívida em nome das futuras gerações é correta e adequada, mas para evitar conflitos distributivos na sociedade e adaptá-lo às mudanças de perfil da população, uma reforma é necessária”, escreveu em seu livro, segundo reportagem do Financial Times.
A discussão sobre o dispositivo foi justamente o gatilho para a implosão da coalizão montada por Olaf Scholz, há algumas semanas. Christian Lindner, ministro das Finanças, foi demitido após confronto com o premiê e com o colega da Economia, Robert Habeck. O político liberal defendia corte severo de subsídios e a manutenção do limite de gastos, enquanto o resto do governo e parte da oposição advogavam por seu relaxamento.
A opinião de Merkel, além de contrastar com seu histórico conservador, vem a público dias depois de Friedrich Merz, candidato a primeiro-ministro de seu partido, a CDU, admitir que o freio pode precisar de ajustes. A Alemanha vive uma campanha eleitoral antecipada, precipitada pelo fim da coalizão de governo. Scholz chamou um voto de confiança no Parlamento, em 16 de dezembro, o que puxará as eleições para fevereiro.
Merz era o líder da CDU no início dos anos 2000, mas foi atropelado pelo grupo de Merkel dentro do partido. Trocou o partido pelo mercado financeiro, com grande sucesso. Foi administrador do fundo BlackRock na Alemanha, emprego que o deixou milionário. Voltou à política pouco antes de Merkel abandoná-la.
De acordo com pesquisas de opinião, Merz tem grande chance de se tornar o próximo primeiro-ministro, já que a sigla conservadora deve obter cerca de um terço dos assentos no Parlamento.
“Freiheit”, que Merkel escreveu com Beate Baumann, sua assessora política de longa data, está disponível em alemão e inglês. A tradução brasileira deve ser lançada no ano que vem, pela Editora Planeta.