A resistência da comunidade árabe em apoiar Kamala Harris por causa do apoio de Joe Biden a Israel em sua ofensiva contra Gaza —o que pode ser decisivo em estados-pêndulo como Michigan— reflete a inclinação desse eleitorado de acordo com a posição americana em conflitos no Oriente Médio.
No começo dos anos 2000, por exemplo, até antes dos ataques de 11 de Setembro, a população árabe e muçulmana costumava apoiar os candidatos republicanos —um comportamento que hoje parece até contraintuitivo.
Os árabes começaram a imigrar para os Estados Unidos no final do século 19, na mesma época em que foram para o Brasil. A maior parte vinha do que são hoje os Estados da Síria e do Líbano. Em sua maioria, eram cristãos, mas um grande número de muçulmanos também migrou.
Essas populações tendem, nos EUA, a ter valores conservadores. Defendem modelos de família tidos como tradicionais, opõem-se ao aborto, rejeitam pessoas transgênero e querem pagar menos impostos. São coisas que estão hoje na base da ideologia do Partido Republicano.
George W. Bush foi talvez o primeiro candidato que se deu conta dessa afinidade e a explorou. O republicano viajou repetidas vezes a Michigan durante a sua campanha presidencial de 2000. É nesse estado que vive a maior comunidade árabe do país.
O investimento deu certo. Um levantamento do CAIR (Conselho de Relações Americanas Islâmicas) sugere que cerca de 78% dos americanos muçulmanos votaram em Bush contra o democrata Al Gore.
Isso pode ter feito a diferença na Flórida, onde Bush venceu Al Gore por algumas centenas de votos. Segundo o CAIR, o republicano liderou entre os muçulmanos daquele estado por uma diferença de 64 mil votos.
As eleições de 2004 já foram bastante diferentes. Naquele ano, ainda de acordo com o CAIR, mais de 90% dos muçulmanos votaram no democrata John Kerry contra o republicano Bush, que agora detestavam.
Há uma explicação simples para essa guinada. Depois dos atentados de 11 de Setembro, Bush invadiu o Afeganistão e o Iraque, ambos de maioria islâmica. As autoridades americanas passaram a tratar árabes e muçulmanos como terroristas em potencial. Como resultado, a islamofobia cresceu nos Estados Unidos —e segue alta desde então.
Parecia, naquele momento, que o cenário nunca se reverteria. Em 2008, 89% dos muçulmanos votaram no democrata Barack Obama. Em 2012, foram 85%. Os republicanos tinham perdido esse eleitorado estratégico.
Donald Trump agravou o cenário com uma retórica de islamofobia explícita. O republicano foi eleito sob a promessa de impedir a imigração de muçulmanos para os EUA. Chegou inclusive a criar um veto à entrada de pessoas vindas de alguns países de maioria islâmica.
A guerra em Gaza, porém, começou a reverter essa tendência. O apoio dos democratas ao governo israelense, cujos bombardeios já mataram cerca de 43 mil palestinos, fez com que muitos árabes e muçulmanos se afastassem do partido. Eles criticam Biden também por não ter impedido Israel de atacar o Líbano —país de onde parte desse eleitorado emigrou.
A fúria dos árabes e muçulmanos se aplacou um pouco com a troca de candidatos democratas. Kamala demonstrou mais preocupação com a crise em Gaza e no Líbano. Ainda assim, não foi o suficiente. Ademais, como vice-presidente, ela acaba também responsabilizada pela situação atual do conflito.
Segundo uma pesquisa publicada pelo CAIR em agosto, apenas 29,4% dos eleitores muçulmanos apoiam Kamala. É uma queda drástica. Ela está empatada com Jill Stein, a candidata do Partido Verde, que tem 29,1%. Trump ainda não emplacou, no entanto: só tem 11,2% de apoio. Já os indecisos são 16,5%, um número bastante elevado.
O republicano tem um desempenho melhor no recorte dos eleitores árabes, isso é, sem levar em conta a religião. Uma pesquisa conduzida pelo instituto YouGov em outubro indicava que 45% dos árabes americanos votariam em Trump, contra 43% que escolheriam Kamala.
Esses números, tomados em conjunto, preocupam em especial por causa de Michigan. Ela lidera no estado por uma margem estreita, que tem diminuído. É onde o voto dos árabes e muçulmanos pode ter peso neste disputado ciclo eleitoral —em que cada cédula pode virar o jogo.