A direita a classifica como uma liderança de extrema esquerda e uma defensora radical de cotas que a esquerda quer transformar na “primeira presidente DEI [acrônimo para diversidade, equidade e inclusão] do país”.
Mas no seu estado natal, a Califórnia, a vice-presidente Kamala Harris é vista como de centro-esquerda, com valores convencionais moldados tanto por sua postura dura contra o crime na época em que atuava na promotoria do estado, nos anos 1990, quanto pelas políticas progressistas típicas da Bay Area, como é chamada a área ao redor da baía de San Francisco.
“Ela é bastante moderada —mais moderada que Newsom”, diz David Townsend, um consultor político de Sacramento filiado ao Partido Democrata da Califórnia, referindo-se ao atual governador do estado, Gavin Newsom.
“E ela tem sido muito bem-sucedida na política. Ela se elegeu promotora, depois procuradora-geral. Essas são funções normalmente ocupadas por republicanos”, ele acrescenta.
Kamala nasceu em Oakland, filha de uma pesquisadora indiana e de um economista jamaicano. Seus pais se conheceram enquanto cursavam seus respectivos doutorados na Universidade da Califórnia em Berkeley.
Quando ela tinha sete anos, eles se divorciaram. Aos 12, ela se mudou para o Canadá com a mãe e a irmã e lá completou o ensino médio. Em seguida, foi para Washington, onde estudou na Universidade Howard, uma instituição ligada à história da comunidade negra dos Estados Unidos, e fez parte de uma irmandade.
Em 1987, ela retornou à Califórnia para cursar direito na Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, em San Francisco. Permaneceu em seu estado natal, onde construiu uma carreira como promotora, primeiro na Bay Area e depois a nível estadual, ascendendo a cargos cada vez mais importantes.
Seu primeiro trabalho no equivalente americano ao Ministério Público foi no escritório do promotor do condado de Alameda, em Oakland, em 1990. Lá, ela se especializou em casos de abuso sexual infantil.
Nos anos seguintes, ela ascendeu primeiro nesse escritório e depois em São Francisco. Um breve relacionamento amoroso com Willie Brown, então poderoso presidente da Assembleia Legislativa da Califórnia que tinha cerca de 30 anos de idade a mais que ela, elevou e complicou seu perfil já em ascensão antes de os dois se separarem em 1995. (Ela posteriormente se referiu à cobertura intensa do relacionamento pela imprensa local como “uma corda no pescoço”.)
Em 2002, ela desafiou o promotor do distrito de San Francisco ao afirmar que as taxas de condenação de sua gestão eram insignificantes. Foi eleita para a função, que ocupou por dois mandatos —foi a primeira mulher negra a ocupar um cargo do tipo em toda a Califórnia.
Em 2010, ela foi eleita procuradora-geral do estado. Foi reeleita com folga quatro anos depois. Em 2014, casou-se com Doug Emhoff, um advogado do sul californiano. Elegeu-se para o Senado com uma vitória esmagadora em 2016.
Ao longo dos anos, Kamala se equilibrou entre as com frequência radicais facções políticas da Califórnia. Ora fazia campanha com uma plataforma punitivista, ora se apresentava como uma “promotora progressista”.
O assassinato de um policial em San Francisco em 2004 fez com que ela se tornasse alvo de críticas por sua oposição à pena de morte —ela decidiu não pedir sentença capital no caso que moveu contra o assassino do agente, o que provocou reações negativas de familiares da vítima, de sindicatos policiais e até mesmo da senadora democrata Dianne Feinstein.
Já como procuradora-geral, Kamala foi atacada por evitar batalhas legislativas sobre questões delicadas, como perfilamento racial, isto é, quando agentes da lei suspeitam de determinada pessoa sobretudo em razão das características fenotípicas dela.
Quando a vice-presidente escolhe uma briga, no entanto, costuma sair vitoriosa e chamar a atenção por isso. Muitos californianos se lembram de Kamala como a procuradora-geral que ganhou um julgamento de mais de US$ 1 bilhão (R$ 5,5 bilhões no câmbio atual) contra faculdades privadas que buscavam lucrar em cima de alunos vulneráveis de baixa renda.
Ela também usou o poder econômico da Califórnia, lar do Vale do Silício, para aliviar em mais de US$ 18 bilhões (R$ 100 bilhões) as dívidas dos proprietários de imóveis no estado prejudicados pela crise de 2008.
Por fim, ativistas pelos direitos reprodutivos de seu estado ficaram exultantes com as perguntas que ela fez ao juiz Brett Kavanaugh durante a audiência de confirmação do magistrado para a Suprema Corte, quando ela ainda era senadora.
Na ocasião, Kamala exigiu saber se Kavanaugh conseguiria citar “uma lei que dê ao governo o poder de tomar decisões sobre o corpo masculino” como as restrições ao aborto fazem em relação às mulheres.
“A pergunta que se deve fazer sobre qualquer vice-presidente é se eles estarão à altura do desafio da mesma maneira que Harry S. Truman [que assumiu a Presidência após a morte de Franklin D. Roosevelt, de quem era vice]”, diz Dan Morain, autor de uma biografia sobre Kamala e jornalista veterano californiano. “Mas os adversários que a subestimam tendem a perder.”