“América, o caminho que me trouxe até aqui nas últimas semanas foi, sem dúvida, inesperado”, disse Kamala Harris ao aceitar a nomeação democrata para disputar a Presidência dos Estados Unidos. “Mas eu não sou estranha a jornadas improváveis.”
Quando o burburinho em torno da substituição de Joe Biden ganhou força, no meio do ano, o nome dela aparecia no meio dos cotados quase que protocolarmente. Diante da crise que assolava o partido em meio à perspectiva de uma derrota quase certa para Donald Trump, apostar em uma vice-presidente apagada não parecia a melhor escolha para ninguém.
Ao anunciar sua saída da corrida, em 21 de julho, Biden não apoiou o nome dela já na carta de desistência. O endosso veio em uma segunda manifestação, pouco depois. Evitando uma luta fratricida que poderia enfraquecer ainda mais os democratas –uma primária a jato? Uma convenção aberta?–, os potenciais concorrentes rapidamente entraram na linha.
Como se caindo do nada de um coqueiro, como ela própria diria, Kamala tornou-se a virtual candidata, sem vencer uma primária, a apenas quatro meses da eleição. Mesmo que não se torne a primeira mulher presidente dos EUA, e a primeira negra e descendente de indianos, sua campanha já entrou para a história.
Por mais que esteja na Casa Branca desde 2021, tropeços no início do mandato fizeram com que Kamala se retirasse dos holofotes. Por isso, o principal desafio de sua campanha foi apresentar a nova candidata ao eleitorado.
A trilha? Beyoncé. O tênis? All Star. O lema? Alegria. A vibe? Brat. O termo, escolhido pelo dicionário Collins como a palavra do ano de 2024, foi popularizado ao dar nome ao último álbum da cantora inglesa Charli XCX e passou a ser usado entre apoiadores de Kamala. Significa algo como criança rebelde, mal comportada.
O alívio entre democratas era visível: talvez uma vitória seja possível. Pesquisas em agosto mostraram uma ascensão impressionante, e logo ela ultrapassou Trump na média dos levantamentos nacionais e no domínio do noticiário.
Sua primeira decisão importante como candidata foi seu vice. Dentre as escolhas de homem branco que tinha, preferiu o “tiozão” Tim Walz ao ambicioso Josh Shapiro. Ao preterir o popular governador da crucial Pensilvânia, Kamala priorizou também evitar mais confrontos com a ala pró-Palestina do partido –judeu, Shapiro é um crítico do movimento.
A candidata ainda ganhou presentes inesperados da campanha de Trump, como o comentário do vice adversário, J.D. Vance, sobre mulheres sem filhos com gatos. Democratas surfaram no meme, colhendo no caminho endosso de diversas celebridades, até chegar ao Santo Graal do pop atual, Taylor Swift.
Mas em meio a todo esse buzz de celebridades e redes sociais, restava a dúvida se Kamala estava à altura da desenvoltura midiática de sua campanha. Seu histórico na área é ruim. Por isso, nas primeiras semanas de corrida, a candidata não deu entrevistas à imprensa.
A estratégia mudou na reta final, quando a pressão gerada pelo empate constante nas pesquisas levou-a até à hostil Fox News e a um sem-número de podcasts. No embate frente a frente com Trump –um hábil debatedor–, ela conseguiu sobressair.
Foi uma evolução não só em relação ao início do governo, mas também em comparação ao fracasso de sua candidatura nas primárias de 2020. Vista inicialmente como um nome forte, sua campanha desmoronou antes mesmo de Iowa, a primeira votação.
Mas durou tempo o suficiente para render declarações que voltaram a assombrá-la agora, como a promessa de banir o fracking, um método de extração de petróleo e gás criticado por ambientalistas, e o apoio ao movimento para cortar o financiamento da polícia.
Trump explorou isso o quanto pôde, na tentativa de caracterizar Kamala como uma típica progressista radical da Califórnia, seu berço político. Em resposta, a democrata recuou de suas posições passadas, afirmou que, sob seu comando, as Forças Armadas dos EUA serão as mais letais do mundo, e até contou ter uma arma. Uma Glock.
Mais importante, em uma eleição em que imigração se tornou um tema prioritário, ela defendeu endurecer as regras de entrada e moradia no país, prometendo tornar o sistema mais rígido. Anos atrás, ela havia criticado as deportações sob Barack Obama e defendido que a travessia ilegal fosse uma ofensa civil, não criminal.
O giro à direita de Kamala é um contraste não só com suas posições em 2020, mas também com as de Biden. Para analistas, é ainda difícil entender o quanto disso é estratégia eleitoral e o quanto é uma antecipação do que será sua Presidência, se eleita.
Outra diferença da vice para Biden é a defesa do direito ao aborto –palavra que o presidente, um homem católico, tinha dificuldade de pronunciar. Kamala, que já havia adotado a bandeira para si desde 2022, quando a Suprema Corte revogou a garantia constitucional ao procedimento, nadou de braçada no principal flanco de Trump.
No que a democrata não conseguiu se diferenciar de Biden foi na economia, a principal fonte de impopularidade do governo atual. Kamala propôs estimular uma “economia da oportunidade” e fez diversas promessas à classe média, como créditos tributários e subsídios para compra de imóveis.
Mas, ao ser indagada em um programa de TV o que faria de diferente do atual presidente, disse: “Nada me vem à mente”. “Foi a pior resposta possível à pergunta mais importante”, diz Ian Bremmer, da Eurasia.
Em seu apelo final ao eleitor, a democrata retomou a mensagem central de Biden: precisamos vencer porque Trump é uma ameaça à democracia. Em seu último grande comício, reuniu 75 mil pessoas em Washington, segundo a campanha, no mesmo lugar onde o adversário incitou seus apoiadores a invadir o Capitólio há quase quatro anos.
“América, sabemos o que Donald Trump tem em mente: mais caos, mais divisão e políticas que ajudam apenas os de cima e prejudicam todos os outros”, disse. “Eu ofereço um caminho diferente e peço o seu voto.”