Os discursos das diplomacias brasileira e argentina durante a reunião de chanceleres do Mercosul que ocorreu neste domingo (7) em Assunção, no Paraguai, um dia antes do encontro de chefes de Estado do bloco, são amostras das divergências entre os dois países.
Em um momento de alta tensão entre o presidente Lula (PT) e seu homólogo Javier Milei, as falas do chanceler brasileiro, Mauro Vieira, e da argentina, Diana Mondino, demonstram as diferenças de posições nas propostas dos países para a agenda externa, como para o bloco sul-americano, benquisto por Brasil e secundarizado por Buenos Aires.
Vieira enfatizou em seu discurso duas propostas que incomodam os vizinhos. Defendeu, por exemplo, a criação de um comitê de mulheres e comércio no Mercosul. É proposta antiga, do conservador Paraguai. Mas, para os argentinos, uma má ideia que eles vêm bloqueando.
“É um tema muito caro às nossas democracias, que devem ser cada vez mais inclusivas e igualitárias”, disse o chanceler de Lula. Mondino não mencionou o tema, como esperado.
Mauro Vieira também enfatizou a importância do IPPDH, o Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos do Mercosul, com base em Buenos Aires e hoje chefiado por uma diretora brasileira.
Como a Folha relatou, a Argentina tem agido para diminuir ou mesmo bloquear o funcionamento do instituto, que comanda projetos ligados, entre outras coisas, ao combate ao racismo e à xenofobia.
“Ressalto a importância de ampliarmos as atividades do instituto e de muni-lo com todos os meios necessários para a contínua promoção dos direitos humanos em nossa região”, disse o chanceler.
Em relatos à chefia do Mercosul, a direção do instituto tem alertado que atualmente existe uma limitação de recursos humanos —falta de contratações— que poderia em breve implicar em uma paralisia institucional do órgão, afetando sua atuação regional.
Também a divergência na agenda regional ficou clara. O chanceler brasileiro abriu sua fala prestando sua solidariedade à Bolívia, que agora ingressa no Mercosul e há poucos dias foi palco de uma tentativa frustrada de golpe de Estado contra o presidente Luis Arce.
“No Brasil também tivemos de enfrentar, ainda nos primeiros dias desse mandato, uma tentativa de reverter, por meio da violência, um os resultados das urnas”, disse ele sobre a invasão das sedes dos três Poderes por bolsonaristas no 8 de Janeiro. “Como no Brasil, a democracia na Bolívia venceu e tenho certeza de que sairá mais forte.”
Mondino tampouco mencionou o tema. E nem se esperava que o fizesse. Seu chefe, Javier Milei, afirmou dias após o episódio do golpe que tudo na verdade se tratou de uma farsa. É uma narrativa que vem ganhando força no país andino, mas para a qual não há provas por ora.
Nas palavras de pessoas envolvidas na agenda bilateral, já houve uma fragmentação nas boas relações. Em comum, diplomatas descrevem uma espécie de perda de espaço de manobra de Mondino, que antes era o pilar das boas relações com o Brasil e vem perdendo espaço para a agenda de Karina Milei na chancelaria argentina.
Irmã do presidente e secretária-geral da Presidência, Karina é o nome mais forte do atual governo argentino, acima de quaisquer ministros. Ela tem feito indicações para a chancelaria e imprimido suas ideias na pasta de Relações Exteriores, assim como em outros ministérios.
Reservadamente, diplomatas também relatam à reportagem que, como o fez recentemente na reunião da Assembleia-Geral da OEA, a Organização dos Estados Americanos, a Argentina tem dificultado no Mercosul debates de gênero, emergência climática e justiça social, demonstrativo da agenda ultraconservadora de Milei.
Nos corredores da cúpula do Mercosul, o deputado argentino Fernando Iglesias, do PRO (Proposta Republicana), que preside a Comissão de Relações Exteriores da Câmara e acompanha a comitiva em Assunção, afirma que o problema da Agenda 2030 da ONU é sua implementação.
“Virou uma implementação muitas vezes delirante”, diz ele. “Um ecologismo Greta Thunberg. Agendas muito setoriais e extremas. Virou uma espécie de guerra de tribos”, afirmou ao ser questionado pela reportagem sobre o bloqueio que a diplomacia de seu país tem operado nos debates sobre o tema em órgãos multilaterais.
Já no final do dia, em uma referência indireta a todo esse contexto, Mondino defendeu que a prática de discordar é saudável. “Dar espaço ao dissenso é o caminho para melhorar. Ninguém é dono da verdade”, disse. “Esperamos não ter ambiguidades: as liberdades individuais, o respeito à vontade do povo e o Estado de Direito são inegociáveis.”