Não é preciso muito tempo de entrevista para perceber que o dinamarquês Torbjorn Pedersen gosta de números. Vide as regras que impôs a si mesmo quando iniciou seu plano de dar a volta ao mundo, dez anos atrás. Ele visitaria 203 países, dos quais 195 são reconhecidos pela ONU; passaria ao menos sete dias em cada um deles; e gastaria, em média, US$ 20 (cerca de R$ 100) por dia durante a viagem, inicialmente vindos de um patrocínio de uma empresa de energia sustentável de seu país, a Ross Energy.
“Presto atenção nesse tipo de coisa”, explica Pedersen. Do início ao fim de sua volta ao mundo, ele anotou, por exemplo, ter feito 351 viagens de ônibus, 158 de trem, 40 por navios de carga e 33 de barco —a principal exigência do projeto era não viajar jamais de avião.
Também contabilizou seis anos de atraso em relação ao prazo original que havia determinado para completar a iniciativa. E dois casamentos, ainda que ambos com a mesma mulher, que passou o equivalente a um ano inteiro com ele ao longo da volta ao mundo e com quem vive hoje na capital dinamarquesa.
Seu retorno a seu país natal ocorreu no final de julho, pelo porto de Aarhus. Quando a Folha o entrevistou por videoconferência, alguns dias após sua chegada, ele já estava em Copenhague, mas ainda se situando. “Preciso aterrissar, não só fisicamente, mas mentalmente. É um processo.”
Pedersen conta que começou a planejar a viagem um ano antes de partir. Na época, nada em sua vida apontava para a jornada. Ele tinha uma carreira consolidada na área de logística. Estava havia um ano em um relacionamento sério. Tinha acabado de comprar um imóvel —ou melhor, ele e o banco, emenda, com uma risada.
Ao mesmo tempo, nutria desde criança um desejo por aventura. Seus ídolos quando pequeno eram personagens como Indiana Jones, e ele era fascinado pelos exploradores de séculos passados: o primeiro homem a pisar na Lua, a subir no topo da montanha mais alta, nadar no oceano mais profundo.
À medida que cresceu, porém, percebeu que todos os grandes marcos já haviam sido conquistados. E cem anos atrás, completa. “Eu tinha nascido tarde demais, todas as grandes aventuras já tinham sido realizadas.”
Até que seu pai enviou para ele uma reportagem sobre pessoas que já tinham ido a todos os países do mundo. “Não sabia que isso era possível. Achava que era preciso ser milionário, ou passar a vida inteira viajando para conseguir algo do tipo”, afirma o dinamarquês que, já na época, era de longe o mais viajado de seus amigos, tendo visitado 50 países.
A vontade se intensificou quando ele descobriu que, ao contrário do que imaginava, ainda poderia ser pioneiro em algo. Segundo suas pesquisas, ninguém nunca havia dado a volta ao mundo de uma vez só sem usar aviões como meio de transporte.
Pedersen admite que hoje, aos 44 anos, acha mais difícil explicar porque o ineditismo do feito era tão importante para ele. Então, diz, a única coisa que pensou era que aquela seria sua grande aventura, uma oportunidade de conhecer pessoas e lugares incríveis e viver histórias inesquecíveis. “Não percebi o nível de dificuldade e os riscos que isso implicaria”, diz.
E os perigos não foram poucos. Pelo menos três dos dos barcos nos quais Pedersen viajou depois naufragaram. Ele teve armas apontadas para o seu rosto em mais de uma ocasião, e em uma delas, em um posto de controle militar no meio de uma selva, teve certeza de que morreria. Em outro momento, teve malária cerebral, e só se salvou porque sua mulher, que é médica, estava de visita e o levou a um hospital ao reconhecer os sintomas da doença. Levou meses até conseguir se recuperar para seguir viagem.
Mas nenhum dos desafios que ele enfrentou se comparam àquele imposto pela Covid-19. Sua ideia ao partir da Dinamarca, em outubro de 2013, era ficar quatro anos na estrada, quem sabe três anos e meio. Dificuldades logísticas e financeiras, incluindo a perda do patrocínio da Ross Energy por determinado período, acabaram fazendo com que o prazo fosse aos poucos sendo estendido.
Até que, em 2020, ele estava a caminho de Hong Kong, onde trocaria de navio para visitar os nove países restantes em sua lista, quando a ilha fechou suas fronteiras ao registrar os primeiros casos do novo coronavírus. Pedersen continuaria lá pelos 23 meses seguintes.
A pandemia também foi o evento que impactou mais negativamente a perspectiva do dinarmaquês durante a jornada. Sem ela, diz o dinamarquês, ele provavelmente teria voltado para casa com mais esperança na humanidade e em sua capacidade de trabalhar em conjunto.
“Nós fomos lá e compramos todo o papel higiênico, e fizemos isso dois meses antes do resto do mundo. Mas ninguém aprendeu. Ninguém olhou para o que a China, por exemplo, estava fazendo. Todo mundo estava tentando inventar a roda.”
Tendo enfim completado a viagem, Pedersen afirma que o saldo de sua equação imaginária mesmo assim continuou positivo para a humanidade. “Costumo dizer que lidar com pessoas em qualquer lugar do mundo é como jogar numa loteria reversa. É muito difícil perder”, diz ele, acrescentando que às vezes é justamente nos países vistos como mais perigosos que os habitantes são ainda mais receptivos a visitantes. “No Afeganistão, no Iraque, na Síria, eles ficam ainda mais animados de conhecer alguém que não foi enviado por um Exército, que não é membro da Cruz Vermelha ou de outra ONG.”
Pedersen diz que a princípio não pretendia ter seu feito eternizado no livro dos recordes em razão da burocracia do processo de verificação. “Um recorde pode ser quebrado, entende? Mas o que fiz foi histórico, e para mim, a história é mais importante do que qualquer recorde.” Ele conta que recentemente, no entanto, foi contatado pelo Guinness, o que poderia facilitar o registro.
Agora, os planos do dinamarquês incluem escrever um livro de memórias em colaboração com um autor profissional, projeto no qual algumas editoras já teriam demonstrado interesse, e se firmar como palestrante motivacional. Um documentário sobre sua volta ao mundo, em produção há quatro anos, deve ser lançado em plataformas de streaming no ano que vem. E ele ainda mantém suas atividades como embaixador da Cruz Vermelha de seu país natal, ajudando a levantar fundos para a organização e incentivando outras pessoas a se tornarem doadores.
Para além dos desafios que Pedersen enfrentou pessoalmente, os registros de seu projeto para a posteridade prometem refletir também as mudanças pelas quais o mundo passou ao longo da década em que ele esteve longe de casa. E elas foram imensas, segundo o dinamarquês.
Quando ele partiu, conta, discussões sobre gênero ou meio ambiente praticamente não existiam. Foi pouco depois do início de sua viagem que alguns começaram a perguntar a ele se seu projeto tinha motivações ecológicos. “Não era o objetivo, mas tenho muito orgulho de ter uma pegada de carbono tão baixa”, diz.
Ao mesmo tempo, quando ele saiu de seu país, a Europa tinha paz, enquanto ao voltar, ele se deparou com a Guerra da Ucrânia, o maior conflito em seu continente desde a Segunda Guerra Mundial. Isso sem falar na pandemia.
Talvez a transformação mais perceptível no cotidiano tenha sido aquela oriunda do avanço da tecnologia. “Quando eu entrei na África, em 2015, era intimidado a cada vez que encontrava alguém vestindo um uniforme”, lembra-se ele. Quando saiu, em 2017, as mesmas pessoas praticamente não o notavam quando ele passava diante delas. “Elas tinham o olhar fixo em seus celulares, perdidas no Candy Crush ou no YouTube.”