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Delírios do ancapismo – 19/08/2023 – Reinaldo José Lopes

Antigamente eram os brasileiros que costumavam refilmar tramas de sucesso da Argentina, como vimos com o sucesso duplo da novelinha “Chiquititas” nos anos 1990 e 2010 (meus filhos assistiam a esse negócio em looping infinito e, se os seus não o faziam, erga as mãos pro céu). Pode ser que agora a ordem dos fatores se inverta, e que a República platina faça um “remake” da nossa novela “Eleja um maluco que fala um palavrão a cada frase para presidente”.

O destemperado em questão, Javier Milei, afirma ser “anarcocapitalista”. O horizonte utópico do pessoal que segue essa ideologia é a abolição total do Estado e sua substituição por uma economia de mercado desreguladíssima, na qual educação, saúde, segurança, Justiça e o que mais você imaginar funcionarão com base em acordos privados entre indivíduos.

Inspirando-me na “sinceridade” de Milei, devo dizer que o sujeito que acredita mesmo nisso 1) é do tipo que come cocô de colherinha e acha que é chocolate ou 2) ignora completamente como funciona a natureza humana (ou de qualquer outro animal social) e como nossas sociedades evoluíram desde que o Homo sapiens surgiu.

Como esta ainda é uma coluna de ciência, falemos do motivo 2. Nas últimas décadas, muitos estudos destrincharam bastante bem como a cooperação pacífica entre indivíduos não aparentados pode emergir em espécies sociais como a nossa. Os principais mecanismos parecem ser a reciprocidade (o famoso “uma mão lava a outra”: se eu te trouxer uma coxa da capivara que eu cacei, você me dá o cesto que você trançou) e a reputação (quem adquire fama de gente fina ganha um “bônus de confiança” inicial nas interações, ampliando suas chances de granjear a boa vontade de quem ainda não o conhece, mas já ouviu falar dele).

Esses princípios básicos parecem dar razão aos anarcocapitalistas (ou ancaps, como também são chamados). Mas repare que eles só funcionam em contextos nos quais há contato próximo direto ou indireto entre os indivíduos. Se você nunca teve a chance de estabelecer relações de reciprocidade com o outro sujeito, nem teve a chance de ouvir falar da reputação dele, como é que as coisas se ajeitam?

Pois é —não se ajeitam. O ideal ancap até poderia ser imaginado em pequenos grupos com algumas centenas de caçadores-coletores (ainda que de capitalistas eles não tenham nada), mas se esfarela diante de grandes populações. E não apenas porque fica muito difícil cooperar, mas porque se torna impossível impedir que grupos nada cooperativos, vindos de fora, façam a sociedade de gato e sapato.

É isso, claro, que os delírios ancaps, que se regozijam ao imaginar um comércio de armas livre, leve e solto para todos, com milícias privadas substituindo as Forças Armadas e a polícia, convenientemente ignoram. Sem uma autoridade superior que detenha a última palavra e o monopólio do uso da força, não há rigorosamente nada que impeça um grupo bem armado de assumir o controle de outro pela força.

Aliás, o paradoxo aqui é justamente esse: foi assim que os Estados surgiram. A Grécia caótica depois do fim da Idade do Bronze, a Europa Ocidental fragmentada após o fim do Império Romano e tantos outros lugares não passavam de variantes do “Ancapistão” primevo. As milícias mais organizadas simplesmente impuseram e/ou negociaram seu predomínio.

A grande questão é que, aos trancos e barrancos, de maneira contraintuitiva e frequentemente não intencional, os Estados que brotaram do Ancapistão primordial impuseram a ordem necessária para que a maioria dos seres humanos atuais viva no mundo proporcionalmente menos violento e mais próspero de todos os tempos.

Negar essa conquista só pela raivinha de não querer pagar imposto é uma marca de ignorância ou má-fé tão grande quanto negar a crise climática —coisa que, sem surpresa alguma, Milei também faz. Que Deus tenha piedade da nação argentina.


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Fonte: Folha de São Paulo

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