“Somos gringos pobres”, diz o motorista Juan Sanchez, 55, enquanto passa em frente a uma casa amarela que diz “tudo por um dólar“. Ao lado, uma cédula verde de óculos escuros exibe os muques, e notas com a face de George Washington voam pregadas ao vidro, anunciando o valor que compra de elástico de cabelo a fones de ouvido.
A loja fica em Quito, onde ninguém vê um “sucre” há mais de 23 anos. A moeda local foi substituída pela americana em meio a uma grave crise bancária no ano 2000. É o que o ultraliberal Javier Milei quer fazer na Argentina caso ganhe as eleições no próximo domingo (22) ou em novembro, no segundo turno.
Seu favoritismo depois das primárias colocou a ideia no centro de intermináveis debates na nação vizinha, incluindo comparações com o caso do Equador, o maior e o único da América do Sul a adotar o modelo. Nas ruas, os equatorianos lembram o trauma inicial de trocar montanhas de dinheiro por montinhos de dólares, mas hoje relatam afeição pelo sistema, defendido pelo presidente recém-eleito Daniel Noboa.
Se de um lado a reforma freou a corrida aos bancos, baixou a inflação e deu uma estabilidade que não se via desde a década de 1970, do outro não significou um equilíbrio nas contas públicas e deixou o governo menos flexível e com menos ferramentas para enfrentar crises externas, o que ficou claro na pandemia.
“A dolarização é a instituição mais popular do Equador, muito pelo êxito que teve na primeira década com o boom das commodities. Agora, o país está se dando conta de que ela é um sargento rigoroso, que tem que ser seguido à risca e não é invulnerável”, diz Augusto De la Torre, professor da Universidade Columbia (NY) e por dez anos economista-chefe do Banco Mundial para a América Latina.
No centro da praça principal de Quito, os gritos de “a um dólar” se sobrepõem entre as dezenas de vendedores ambulantes. Os preços se praticam basicamente em moedas: quem tenta pagar alimentação ou transporte com notas mais altas do que US$ 10 ou US$ 20 pode receber um semblante confuso do outro lado. Não existe troco.
Já as cédulas de US$ 50 ou de US$ 100 geram logo desconfiança. “Só os narcos têm, para lavar dinheiro”, diz o motorista Juan, em referência aos traficantes de drogas. Um almoço “prato feito” pode sair entre US$ 2 e US$ 4 na região, ou seja, de R$ 10 a R$ 20. Já um mais caro chega a US$ 15 ou US$ 20, o equivalente a R$ 75 a R$ 100 —no geral valores mais baratos do que nos Estados Unidos.
“Eu gosto do dólar, porque em sucres cada dia subia mais e mais e mais. Agora não sinto tanto. Tendo trabalho, pode-se comprar uma televisão, um liquidificador, e não é preciso trocar para viajar”, afirma o pedreiro Luis Bautista, 65, lendo as notícias sobre o novo presidente no jornal enquanto tem os sapatos engraxados.
Duas décadas atrás, porém, o efeito imediato da dolarização foi uma repentina transferência de riquezas. Quem tinha suas economias em sucres perdeu quase tudo e quem tinha dólares ou dívidas na moeda local se beneficiou, o que deixou uma forte memória na população mais velha.
“Eu tinha 1 milhão de sucres, bastante dinheiro na época, e de repente estava com US$ 40. Trabalhei muito para consegui-lo”, lembra o engenheiro informático Elvis Oña, 59. “Foi terrível, muita gente perdeu suas aposentadorias, faliu, se endividou, se desesperou, se suicidou”, diz sua esposa, Fátima Piedra, 60.
Quem havia vendido carro ou casa, por exemplo, já não podia comprar outro com o dinheiro que recebeu. “Foi um pouco fatal até que se estabilizasse. Com 25 mil sucres se podia fazer comida, suco, arroz, mas aí viraram US$ 1 e acabou rapidinho”, conta a comerciante Vanny Mena, 74, que até hoje guarda uma caixa da moeda antiga em casa, que não trocou na época.
Vicente Albornoz, coordenador do curso de economia da UDLA (Universidade das Américas), pondera que a população costuma confundir os efeitos da dolarização com os da grave crise de 1999 que levou à reforma. “Para mitigar a crise se emitiu muitos sucres, o que fez ele perder valor. Ou seja, não foi só pela dolarização, mas pela desvalorização e inflação”, diz.
A mudança de moeda veio como última opção, afirma o professor De la Torre. Os bancos quebravam, as instituições perdiam credibilidade e as pessoas corriam às agências para retirar seu dinheiro, comprar dólares e sair do país. O presidente Jamil Mahuad então congelou as contas por quase um ano, até decretar a medida em 9 de janeiro de 2000. Ele cairia 12 dias depois, com uma rebelião popular.
O anúncio foi suficiente para aclamar os ânimos, frear a corrida cambiária e, após alguns meses, diminuir a inflação, que em um ano se equiparou à americana. Hoje, porém, o país ainda tem uma situação delicada, com a economia estancada, mais de uma década de déficits e importantes dívidas externas. Tendo sua produção em dólar, também perde competitividade e fica presa a exportações de commodities.
“A estabilização fiscal não é um subproduto automático da dolarização. O Equador é um exemplo claro disso. […] Sem disciplina fiscal, a medida se torna muito dolorosa, acarretando custos significativos em termos de crescimento e emprego, ou, eventualmente, levando ao colapso”, avaliou o grupo Goldman Sachs em relatório a investidores.
Na Argentina, a medida soa como solução a pelo menos 30% da população que votou em Milei nas primárias, vendo os salários derreterem nas mãos. Mas a situação e o tamanho do país são bastante distintos, a começar pela falta de reservas de dólares nos cofres públicos.
“É bastante óbvio para um economista que, para um país grande, o melhor sistema é o de moeda própria. A pergunta é se é realista pensar em estabilidade e credibilidade na Argentina. Não é uma varinha mágica, e sim uma discussão importante sobre o que se ganha e o que se perde”, afirma De la Torre.