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Cínico mas pragmático, discurso de Trump acena a indecisos – 27/09/2023 – Ross Douthat

À medida que o desafio de Ron DeSantis a Donald Trump parece ter enfraquecido, uma sabedoria convencional ficou mais forte: DeSantis tem oferecido aos eleitores republicanos o trumpismo sem o drama, mas agora sabemos que os republicanos amam o drama —sem isso, qualquer substância é simplesmente desinteressante para eles.

Em certo sentido, essa é uma conclusão razoável a se tirar da forma como as múltiplas acusações contra Trump parecem ter solidificado sua posição de favorito, o jeito como ele absorveu o oxigênio da mídia e construiu sua liderança nas primárias com base no que seria, para qualquer político normal, uma publicidade terrível.

Mas isso omite o fato de que DeSantis, como muitos de seus rivais na atual batalha pelo segundo lugar, na verdade não ofereceu aos eleitores uma equivalência do trumpismo, e certamente não o trumpismo que venceu a disputa primária republicana de 2016 e depois derrotou Hillary Clinton.

Ele ofereceu parte desse pacote, certamente: a promessa de travar uma guerra contra os progressistas por todos os meios disponíveis, as palavras duras para especialistas e elites, a hostilidade à imprensa. Mas ele realmente não tentou canalizar outro elemento crucial do trumpismo —a união do extremismo retórico com a flexibilidade ideológica, a capacidade de soltar um insulto cruel em um momento e prometer fazer um grande acordo bipartidário no próximo.

Isso foi o que Trump ofereceu ao longo de 2016. Enquanto seus rivais nas primárias o acusavam impotentemente de ser pouco conservador, ele abraçava alegremente várias heterodoxias em relação à saúde, comércio e impostos, vendendo-se como um moderado econômico com o mesmo entusiasmo com que prometia construir o muro e proibir visitantes muçulmanos nos Estados Unidos.

Essas heterodoxias muitas vezes eram mais lábia do que agenda política sincera, o que ajuda a explicar por que sua passagem pela presidência foi mais convencionalmente conservadora do que sua campanha.

Mas agora o candidato Trump está de volta ao jogo retórico. Na última semana, o homem cujos indicados à Suprema Corte derrubaram a decisão Roe vs. Wade [que garantia direito constitucional ao aborto no país] e cuja administração foi hostil aos sindicatos condenou a proibição do aborto a partir de seis semanas de gestação assinada por DeSantis, prometeu unir o país em relação à questão e indicou que vai fazer frente ao debate presidencial republicano da próxima semana comparecendo no mesmo horário ao piquete dos trabalhadores em greve do sindicato United Auto Workers (UAW).

Você pode ver essas incursões como prova de que Trump acredita que já tem a indicação garantida, que o movimento pró-vida não tem escolha a não ser apoiá-lo e que ele pode começar a se apresentar como um candidato para a eleição geral antecipadamente.

Mas suspeito que seja um pouco mais complicado do que isso, e que a disposição de Trump em mostrar flexibilidade ideológica —ou, para ser um pouco mais duro, a capacidade de agradar vazia e superficialmente qualquer plateia— também tem suas utilidades nas primárias. Porque o que isso mostra, mesmo para os eleitores republicanos que discordam dele, é uma vontade de vencer mesmo à custa da consistência ideológica, uma vontade que grande parte do conservadorismo americano não possui.

E mostrar sua capacidade eleitoral é possivelmente ainda mais importante para Trump em 2024 do que em 2016, porque ele estava em seu ponto mais fraco após as eleições de meio de mandato de 2022, que pareciam expor suas obsessões com fraudes no pleito como um desastre político para o Partido Republicano. Então, ao se mover para o centro antecipadamente, enquanto DeSantis e outros tentam se opor a ele pela direita, ele contraria essa narrativa, tentando provar que está comprometido com a vitória e não apenas com a vaidade. (Com base em pesquisas nacionais, nas quais ele agora se sai um pouco melhor do que DeSantis contra Biden, está funcionando.)

Trump realmente tem uma solução amigável aos trabalhadores para a greve da UAW ou uma agenda coerente pró-trabalhador? As respostas são não e não exatamente.

Mas se mostrar simpatia pública pelos trabalhadores e prometer tarifa de 10% sobre bens estrangeiros são, respectivamente, um gesto vazio e uma jogada duvidosa, eles ainda são uma mensagem política melhor do que, digamos, o que obtivemos de Tim Scott, o candidato do conservadorismo pré-Trump, que sugeriu que os trabalhadores da UAW deveriam ser demitidos da mesma forma que Ronald Reagan demitiu os controladores de tráfego aéreo.

Esse tipo de posição absurda, invocando a demissão de funcionários federais por Reagan no contexto completamente diferente de uma luta do setor privado onde os empregadores não podem demitir grevistas, é exatamente o que o termo “reaganismo zumbi” foi inventado para descrever.

Da mesma forma, Trump realmente pode mediar um compromisso nacional sobre o aborto ao ignorar o movimento pró-vida? Eu não apostaria nisso; para o bem ou para o mal, espero que seu relacionamento transacional com organizações antiaborto sobreviva em um possível segundo mandato.

Mas sua repentina abordagem pró-escolha é uma resposta cínica a um problema político real para os republicanos. Se você aspira restringir o aborto além dos estados mais conservadores de forma politicamente sustentável, você precisa, no mínimo, de uma modulação retórica, uma forma de se aproximar dos indecisos. E melhor ainda seria alguma espécie de oferta alternativa para os americanos que são pró-escolha, mas com ressalvas —sendo a forma óbvia algum novo conjunto de políticas para a família, algum tipo de apoio para mulheres que se encontram grávidas e em dificuldades.

Mas a maioria dos republicanos claramente não quer fazer esse tipo de oferta, além de alguns gestos inócuos e iniciativas estaduais muito modestas. DeSantis foi rápido (ao menos segundo seus padrões) em atacar Trump por trair a causa pró-vida, e qualquer opositor do aborto deveria querer ver Trump punido politicamente por essa tentativa de traição. Mas nada na resposta de DeSantis foi direcionado ao problema de aproximação, ao problema político, ao problema das eleições gerais que Trump, de forma desprovida de princípios, estava claramente tentando resolver.

E assim tem sido ao longo das primárias até agora. Trump faz grandes promessas audaciosas; seus rivais marcam caixinhas ideológicas. Trump fala como um candidato de eleições gerais; seus rivais disputam entre si por eleitorados mais restritos. Scott e Nikki Haley repetem as campanhas de Jeb Bush ou Marco Rubio; DeSantis busca melhorar a estratégia de Iowa de Ted Cruz… mas o único candidato que realmente promete o trumpismo de 2016 é, mais uma vez, o próprio Donald Trump.


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Fonte: Folha de São Paulo

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