Em agosto de 2021, o mundo assistiu a cenas desesperadoras de uma tentativa de fuga em massa do Afeganistão enquanto o Talibã invadia a capital, Cabul.
Reagrupado décadas após ter sido expulso pela invasão que se seguiu aos ataques de 11 de Setembro, e encorajado pela retirada acordada das forças dos Estados Unidos que restavam, o Talibã depôs o governo eleito.
Mas enquanto milhares de pessoas partiam, algumas tentavam entrar no país —incluindo Ibrahim Nash’at, um jornalista e cineasta egípcio baseado na Alemanha.
Depois de muita persistência, Nash’at conseguiu obter permissão para permanecer no Afeganistão por até um ano para filmar, sobretudo, com o então recém-nomeado comandante da Força Aérea do país, Malawi Mansour, e um jovem militante talibã, MJ Mukhtar, que no filme sonha em ingressar na Força Aérea e se vingar dos americanos.
Agora, três anos depois da volta do Talibã ao poder, o resultado é o documentário “Hollywoodgate”, que tem o nome da base militar abandonada da CIA, a agência de inteligência americana, onde foi realizada grande parte das filmagens.
Mas ao tentar contar a história da nova era do país, Nash’at se viu em uma posição desconfortável e muitas vezes tensa diante de um novo governo que havia se tornado conhecido pela execução e repressão durante sua primeira passagem pelo poder.
“Aquele diabinho está filmando”, diz um membro desconhecido do Talibã a Mukhtar na presença de Nash’at.
“Espero que ele não nos envergonhe diante da China.”
Em outra ocasião, Mansour diz casualmente na frente de Nash’at que “se ele estiver com más intenções, vai morrer em breve”.
Questionado sobre isso, Nash’at diz: “Na verdade, não entendi o que eles estavam dizendo na época. Pedi ao tradutor para não me contar coisas ruins que diziam a meu respeito. Não queria surtar. “
Embora tenham dito com frequência para ele parar de filmar, Nash’at conseguiu imagens mais do que suficientes para o documentário, no qual o público vê os vestígios do cotidiano das tropas americanas, como se a câmera fosse invisível.
Entre eles, esteiras (Mansour pede no filme que uma seja enviada para sua casa), placas indicando banheiros unissex e uma geladeira contendo álcool, além de parte do estoque de armas de US$ 7 bilhões (aproximadamente R$ 38,8 bilhões) que os EUA confirmaram mais tarde ter deixado para trás, incluindo cerca de 73 aeronaves e cem veículos militares.
“Esses monstros passaram seus últimos dias aqui destruindo tudo”, diz um deles sobre os americanos, enquanto Mansour e sua equipe inspecionam pela primeira vez a antiga base da CIA à luz de lanternas.
O comando militar dos EUA disse na época que o equipamento militar havia “se tornado impossível” de ser usado novamente, embora Nash’at tenha filmado alguns reparos em aeronaves sendo realizados, e o documentário apresente cenas em que seus oficiais garantem a Mansour que alguns estão consertados e prontos para serem testados no ar.
Perguntas para os EUA
Nash’at contou à BBC News que ficou chocado ao descobrir tudo que havia ficado para trás.
“Quando vi pela primeira vez a palavra ‘Hollywoodgate’ na base, me deu um estalo”, diz ele.
“Pensei em fazer um filme sobre este espaço doido que era americano, e depois é ocupado pela Força Aérea talibã. Pensei que poderia ser sobre como eles dormem em camas americanas, mas passou a ser muito mais sobre as armas.”
“É inacreditável que estas coisas existam”, acrescenta.
“É realmente uma pergunta para as autoridades americanas: por que eles deixaram tudo isso para trás? Quantos outros depósitos deixaram cheios? E até o final das minhas filmagens, nunca pensei que eles [o Talibã] seriam capazes de consertá-los.”
No entanto, cenas posteriores do filme, gravadas um ano depois, em agosto de 2022, mostram um desfile militar na Base Aérea de Bagram diante do primeiro-ministro e do ministro da Defesa afegãos, com grande parte do armamento dos EUA em uma exibição triunfante, enquanto recebem visitantes diplomáticos de países como Rússia, China, Paquistão e Irã. Mansour ordena um sobrevoo de várias aeronaves.
Desde então, a imprensa americana noticiou que armas deixadas para trás no Afeganistão apareceram em outros conflitos ao redor do mundo.
“O filme realmente mostra a transformação do Talibã: de milícia em regime militar”, afirma o diretor.
Nash’at não conseguiu filmar nada depois daquele desfile, diz ele, porque logo depois sentiu que precisava fugir, pois foi solicitado a se apresentar aos funcionários do serviço de inteligência para que suas filmagens fossem inspecionadas. Em vez disso, ele foi para o aeroporto de Cabul.
“Eles me disseram: ‘Ei, venha amanhã ao nosso escritório com todo o seu material, queremos conferir'”, relembra.
“Para mim, este foi um grande alerta. Deixei então o Afeganistão imediatamente.”
“Sei que, com este tipo de regime, no momento em que você segue esse caminho, vai ser uma espiral descendente, nunca vai ser algo bom”, afirma.
Nash’at explica que entrou no país enquanto a maioria dos outros tentava sair, “porque, como jornalista, aprendi que quando algo deixa de ser a história quente, ninguém se importa mais. Eu queria entrar, e fazer o oposto.”
O cineasta acredita que acabou conseguindo acesso porque, durante sua carreira, havia “filmado com líderes mundiais, e eles [o Talibã] viram imagens minhas com presidentes”.
Aliás, o filme tem um pedigree de prestígio, uma vez que é coproduzido pela canadense Odessa Rae, também por trás do documentário vencedor do Oscar Navalny.
“Para mim, o nome ‘Hollywoodgate‘ é uma representação do que se trata este filme. É um longa sobre o Talibã tentando mostrar que entende de propaganda”, afirma Nash’at.
“É também sobre as histórias de Hollywood que nos contam sobre este tipo de mundo militar. Para mim, tem tantas camadas que sinto que é um escândalo patrocinado pela própria Hollywood. Funciona como um teatro grego em que o fracasso da ocupação do Afeganistão liderada pelos EUA é encenado.”
As filmagens de Nash’at foram restringidas de acordo com as ordens dos comandantes do Talibã com quem filmou. Como resultado, a crítica do filme no jornal americano The New York Times o classifica como um “documentário frustrante”.
“Não há dúvida de que o diretor enfrentou um perigo tremendo ao filmar”, diz o texto, “Mas os riscos exigidos para fazer este documentário também destacam suas limitações”.
No entanto, a crítica do filme feita pelo jornal britânico The Guardian observa: “Se a versão final do filme carece de entrevistas investigativas e análises rigorosas, há uma razão óbvia: todos os participantes o odeiam”.
Nash’at é filosófico em relação a isso. “Acho que com este tipo de situação, quando você corre esse risco, sabe que existe um risco envolvido, então você vai viver o resto da sua vida sabendo que há um risco envolvido. E é algo que passei a aceitar.”
Ele também enfatiza que sua narração no início do filme diz aos espectadores que o Talibã queria que eles vissem algumas das imagens que ele gravou.
“Peço ao público, apesar disso, ‘posso mostrar a você o que vi?'”, diz ele.
“Meu trabalho como cineasta é levantar questões, e esperar que os espectadores as captem e tentem encontrar respostas para elas. Meu objetivo é que possamos ver além das maneiras como eles se apresentam, e compreender a verdade de suas ambições por controle —das mulheres, dos seus compatriotas, da sua região geopolítica mais ampla.”
Os afegãos comuns geralmente são retratados no filme observados de um carro ou caminhão. Não há praticamente nenhuma mulher no documentário —apenas um casal filmado de passagem.
Uma imagem particularmente comovente é a de uma mulher vestida com uma burca, sentada numa rua gelada. Outras mulheres, todas de burca, sentam-se do lado de fora de uma loja. Parece que elas estão pedindo dinheiro, mas não está claro.
‘Doloroso de assistir’
Nos três anos desde que o Talibã assumiu o controle do Afeganistão, as restrições à vida das mulheres aumentaram. As meninas foram proibidas de frequentar o ensino médio, impedidas, assim, de prestar a maioria dos exames de admissão à universidade.
Além disso, restrições de trabalho foram impostas às mulheres, os salões de beleza foram fechados, e elas também foram impedidas de frequentar parques, academias e clubes esportivos.
Mansour conta que sua esposa era médica antes do casamento, mas que ele a fez desistir da carreira.
A ONU (Organização das Nações Unidas) estima que mais de dois terços do país não têm alimento suficiente —e que a situação piorou devido às sanções econômicas impostas às mulheres.
“É doloroso ver estas imagens, e saber que esta é a realidade. É muito feia. O que está acontecendo lá é simplesmente doloroso”, diz Nash’at.
“Quando saí, fiquei assombrado pela futilidade do material que tinha, pensando que talvez não conseguisse transmitir a dor do povo afegão.”
“Mesmo que eu estivesse com o Talibã, consigo ver nos olhos das pessoas o medo que elas têm, a tristeza, o cansaço. Os níveis de pobreza estão numa escala que nunca vi em nenhum outro país, e tenho viajado muito. É muito triste que este país esteja onde está hoje, e que ninguém realmente se importe com o que está acontecendo com ele.”
“Eu escolhi ir para o Afeganistão. Decidi fazer isto no Afeganistão”, admite.
“Todo o sofrimento que passei ao fazer o filme não é nada comparado ao sofrimento diário dos afegãos.”
Esta reportagem foi originalmente publicada aqui.