“Nós tentamos cruzar ontem, nossas roupas estão encharcadas”, conta o iraniano Shahab, 26. De etnia curda, ele é um dos milhares de migrantes que vivem em Calais, no norte da França, à espera da oportunidade de subir em um bote para cruzar o Canal da Mancha em direção à Inglaterra.
A Folha encontra Shahab no centro da cidade, junto com sua mãe, tio, e dois irmãos. O mais novo, um menino de seis anos, treme de frio enrolado em uma coberta fina numa noite em que a sensação térmica é negativa.
A família carregava em três sacos pretos de lixo seus poucos pertences. “Por favor, nos ajude, não queremos dormir de novo na rua”, pede Shahab, com ajuda de um aplicativo de tradução —sua língua materna é o persa.
A travessia do Canal da Mancha com barcos improvisados começou a ser registrada em 2018, e, neste ano, mais de 34 mil pessoas atracaram em terras inglesas dessa forma.
Há quem, porém, nunca chegue lá. Em 2024, já morreram na travessia ao menos 75 migrantes, incluindo 13 crianças, segundo a OIM (Organização Internacional para as Migrações), tornando 2024 o ano mais letal do Canal. O recorde anterior havia sido registrado em 2019, com 50 vítimas.
O recrudescimento das políticas imigratórias e a piora da qualidade de vida nas cidades francesas são apontados como razões para o aumento da letalidade. Em março de 2024, o jornal britânico The Guardian mostrou que a polícia francesa estava realizando operações de interceptação de migrantes. As táticas incluem rasgar os barcos infláveis e usar embarcações para empurrar os botes para trás —gerando ondas que podem levar a naufrágios.
Shahab, o imigrante curdo, afirma que a polícia impediu o bote em que ele e sua família estavam embarcados de continuar pelo mar. “Nosso barco explodiu”, diz, fazendo com a mão um movimento de perfuração. “Nem cachorros são tratados assim”, fala, sacudindo a cabeça.
As condições de vida para os migrantes em Calais também têm se deteriorado. “A cada dois dias a polícia faz uma ronda e desmonta todas as barracas”, explica o português Shmash, voluntário da ONG Calais Food Collective, que distribui água potável e comida para os refugiados. Desmontar, em muitos casos, significa também destruir barracas e apreender os poucos objetos que os imigrantes possuem.
A política de “não fixação” é defendida como forma de desestimular a travessia do canal. Ativistas como Shmash dizem que, pelo contrário, elas empurram quem já está na cidade a tentar cruzar o mais rápido possível. “É uma desumanização. Nós tentamos garantir um mínimo de dignidade a essas pessoas.”
Calais é hoje um complexo ecossistema de migrantes, associações governamentais, ONGs e organismos internacionais. A cidade sempre foi um ponto importante de comércio, por ser a mais próxima à Inglaterra, separada por cerca de 50 quilômetros de água de Dover. Nos anos 2010, essa localização começou a atrair pessoas fugindo de conflitos, perseguição ou miséria.
Em 2018, foram contabilizados 299 migrantes que chegaram assim ao Reino Unido. Desde então, 148 mil pessoas já concluíram a rota —e outras centenas de milhares já tentaram.
Na última sexta-feira (13), o clima na cidade era de expectativa. Durante as primeiras duas semanas de dezembro, as condições meteorológicas impediram a saída de botes. Mas, naquela noite, o aplicativo Windy, usado pelos imigrantes para monitorar o vento e as ondas no canal, apontava uma melhora.
Sacos pretos de lixo com coletes salva-vidas laranjas eram vistos no centro comunitário gerido pela organização humanitária Caritas. “Hoje estamos mais vazios, porque muita gente está se preparando”, diz a coordenadora do espaço, Lea Biteau.
Pouco depois, as irmãs Seher, Negin e Farina Azizi saem do centro de coletes em mãos. Afegãs, as três fugiram do país após a tomada de poder do Talibã. “Nós estávamos há cinco meses na Alemanha, mas nosso asilo foi negado”, diz Seher, 21. A jovem estudava ciência da computação antes de ser obrigada a deixar os estudos pelos fundamentalistas.
Naquela noite, 85 pessoas foram resgatadas pelas autoridades francesas no Canal, e outras 160 chegaram às praias inglesas.
Até novembro deste ano, a rota do Canal da Mancha registra o segundo maior número de travessias irregulares na Europa, com 62.125 tentativas de migração, um incremento de 6% em relação a 2023. Vai na contramão da tendência do ano, que é de queda.
Segundo a Frontex, agência que monitora as fronteiras da União Europeia, o número de imigrantes apreendidos caiu 40%. “Vai da movimentação das pessoas aos grupos criminosos, a disponibilidade de meios de transporte no momento e até as condições nos países de origem”, afirma Jorge Galindo, do Centro de Análise de Dados da OIM, em Berlim.
A situação no Canal é ainda mais complexa, pois quem chegou a Calais vem de um processo migratório anterior, como as irmãs Azizi. “Tem gente que atravessou a Europa inteira. As pessoas vão continuar migrando, o processo tem que ser mais seguro, mais digno”, afirma.
É o oposto do discurso político vigente na Europa. A extrema direita transformou a repressão à imigração em ativo eleitoral e já é imitada por conservadores e centristas. Mas a repressão na fronteira, demonstram estudos, não inibe os fluxos. “Só aumenta o preço dos coiotes e eleva os riscos, pois os imigrantes se submeterão a condições ainda mais perigosas”, explica Galindo.
“Os últimos dez anos deram um impulso aos processos migratórios. Por diversas razões, guerras, mas também por uma precariedade global do trabalho, em todos os níveis, em todos os grupos sociais”, diz Rosana Baeninger, professora da Unicamp. “Ao mesmo tempo, existe a questão demográfica, não há gente suficiente na Europa para trabalhar, os imigrantes são necessários. O mundo precisa dos migrantes desejados e dos indesejados, que se arriscam pelo Canal.”