Protagonista da grave crise que assola a Bolívia, Evo Morales, 65, acusa sem provas seu ex-pupilo, o atual presidente, Luis Arce, de ter conhecimento de planos para eliminá-lo “política e fisicamente”.
O antigo sindicalista, que governou de 2006 a 2019, afirma ter sido alvo de uma emboscada no domingo (27) para matá-lo e que o plano teria sido orquestrado pelo ministro de Governo, Eduardo del Castillo.
À Folha ele declara que havia anuência de Lucho, como se refere a Luis Arce. Evo falou por videochamada, em Cochabamba, onde vive. Recusou-se a responder às perguntas sobre a investigação de abuso de menores da qual é alvo. Há um mandado de prisão contra ele.
Algumas horas após a entrevista ser realizada, Arce se pronunciou em rede nacional e disse que “o evismo” tenta encurtar o seu mandato. Ele também afirmou que agirá contra aqueles manifestantes que seguem bloqueando vias públicas do país há mais de duas semanas. “Os interesses de uma pessoa nunca vão se sobrepor ao bem comum.”
O sr. e pessoas próximas disseram que membros do governo Arce tentaram assassiná-lo, especialmente o ministro Eduardo Del Castillo. Essa também é uma acusação direta contra o presidente?
Chegaram a mim com esse plano [para me eliminar] em janeiro de 2022, [vindo] da equipe de comunicação do ministério do Governo. Entre agosto ou setembro houve uma reunião, eu tinha contato com Lucho Arce. Mostrei: “Lucho, presidente, o que é isso? Um plano para eliminar politicamente Evo.” Ele se assustou e então me disse: “Vou investigar”. Até agora, nada.
O que o sr. está dizendo é que Lucho tinha conhecimento de um plano para aniquilá-lo politicamente e não fez nada?
Exatamente.
Mas no caso da suposta tentativa de assassinato, a quem dirige sua acusação? Ao presidente ou ao ministro Castillo?
O ministro tem que fazer o que diz o presidente. O ministro não é autônomo, não é independente. Lucho nem sequer me ligou. Teria que ligar, expressar solidariedade e prometer que iria investigar. Repito: o ministro faz o que ordena o presidente.
O governo disse que investigará a possibilidade de um autoatentado e falou em um teatro armado pelo senhor.
Dizem que era uma operação de narcóticos. Mas os policiais não estavam com uniforme de narcóticos. Não estavam com o carro da Força Especial de Luta contra o Narcotráfico. Ontem uma capitã me disse que o plano era, se não me detivessem, me matar.
Até agora o governo do presidente Lula não disse nada. Membros da diplomacia brasileira estão esperando mais detalhes para se pronunciar. Esperava algo?
O irmão presidente Lula nunca me abandonou e penso que não vai me abandonar. Ele sabe que cheguei à Presidência sem formação acadêmica, graças à verdade e à honestidade.
Entendi que a política é a ciência do serviço, e que esforço é sacrifício pelo povo humilde. Fiz isso por 14 anos e por isso tenho apoio. Meu pecado é ter tanto apoio. Quando não podem eliminar politicamente, nem moralmente, nem juridicamente, tentam acabar fisicamente.
Existe alguma chance de o sr. e o presidente Luis Arce negociarem uma solução?
Desde 2022, o MAS [Movimento ao Socialismo] detecta que temos profundas diferenças ideológicas e programáticas.
Lucho adotou a receita do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional: reduzir o Estado. E esse Estado mínimo só regula, não investe. E quem investe? As multinacionais.
Sendo que nós demonstramos em 14 anos, nacionalizando os recursos naturais e os serviços básicos, que a Bolívia tinha muito futuro.
O sr. era padrinho político de Arce, então imaginávamos que as ideias fossem as mesmas. O que houve para essa ruptura?
Estou demonstrando como Lucho “se direitizou” programaticamente. Não posso entender como em junho, durante o golpe ou autogolpe, a Embaixada dos Estados Unidos o defendeu. Quando no mundo, especialmente na América Latina, os Estados Unidos vão defender um governo de esquerda? Nunca.
Por que tentar de novo ser presidente? Não acha que isso gera um dano à democracia e à população que o sr. diz querer defender?
Que culpa tenho se o povo me apoia? Retornando da Argentina após um ano de exílio, perguntei: “Me digam companheiros, agora que não sou presidente, deixo a luta sindical? Deixo a luta eleitoral?” Um mês depois vou consultar as bases. A resposta: Evo vai seguir na luta social, na sindical e também na luta eleitoral.
Evo é o primeiro presidente indígena. Evo é o melhor presidente da história da Bolívia. Eu bati recorde. Faltavam dois meses para ser presidente por 14 anos. Nenhum presidente me alcançou. O império, o capitalismo não aceita operários, indígenas, gente de origem humilde. Na política do império, os pobres não devem fazer política.
A situação atual do país, com bloqueios nas ruas e nas estradas, também é um caos para a população.
Quem provocou esse bloqueio? O governo. Lucho é o primeiro bloqueador de caminho. Dias sem combustível. Tantas filas. Ele é o primeiro bloqueador da família.
Existem acusações de abuso sexual e de tráfico de menores contra o sr. O que pode dizer? Teve relações com menores?
Isso é de 2020, da ditadura [referência ao período sob governo de Jeanine Áñez, depois presa sob acusação de conspiração e de tramar um golpe contra Evo]. Não encontraram nada, encerraram. Isso é um fato puramente político.
Acho importante que expliquemos isso. Qual relação o sr. tinha com essas meninas que eram menores? Mayara, quer que façamos assim? Isso é humilhar a família. Não vamos falar desses temas. Repito: me investigaram no golpe de Estado, não encontraram nada. Pelo código de processo penal, não se investiga duas vezes.
Volto a outro tema: existe alguma chance de que os senhores, Evo Morales e Lucho Arce, negociem uma solução?
Repito, não é Evo Morales, são os movimentos sociais. Se se trata de Evo, eu não negocio com traidores, nem corruptos, nem narcotraficantes.
Há algo mais que queira compartilhar?
Repito: meu delito é ser índio, dirigente sindical e ter apoio do povo. Se amanhã fossem as eleições, eu ganharia com quase 60%. Lamento o que passei. Não poderia acreditar que quem estava quase 14 anos meu ministro tentaria me matar.
Raio-X | Evo Morales, 65
Presidente da Bolívia por três mandatos, de 2006 a 2019, ano em que renunciou em meio a intensos protestos e sob o argumento de que havia um golpe de Estado em curso. Exilou-se e, em 2020, retornou a seu país. Impedido de concorrer de novo, insiste em fazê-lo. É alvo de investigações sobre abuso de menores, que diz se tratar de perseguição. De origem aimara, foi líder sindical cocaleiro.