Numa vila de 4.200 habitantes na Polônia, um palco similar ao de festivais de música destoa na paisagem.
Em Markowa, a 350 km de Varsóvia, em volta de uma estrutura que deve receber mais de 20 mil pessoas, funcionários aparam a grama com esmero e retiram pedras do trajeto que leva à igreja local para limpá-las.
A preparação meticulosa acontece devido à cerimônia de beatificação, neste domingo (10), da família Ulma, que escondeu judeus durante a Segunda Guerra Mundial e, por isso, foi fuzilada e jogada em uma vala comum cavada pelos próprios moradores do vilarejo sob ordens de guardas nazistas.
Ao mesmo tempo em que celebra um episódio heroico contra o terror promovido pela Alemanha de Adolf Hitler, o evento também expõe fraturas na maneira como o governo polonês tenta moldar a narrativa em torno da participação de cidadãos do país no Holocausto e ocorre próximo às eleições parlamentares, em outubro, quando o partido ultraconservador PiS (Lei e Justiça), no poder desde 2015, tentará se reeleger.
Ainda que não tenham sido os únicos a ajudar judeus da província onde Markowa está localizada, Jósef e Viktoria Ulma, com seus seis filhos, notabilizaram-se por terem sido os únicos ali a serem assassinados devido a tal atitude e, portanto, viraram mártires. Por quase dois anos, o casal escondeu oito pessoas, que também foram mortas pelos nazistas —dos 120 judeus do vilarejo, apenas 21 sobreviveram.
A casa já não existe mais, tendo sido destruída anos depois da guerra devido a problemas estruturais. Mas o esforço de Maria Riznar-Fołta, que há 40 anos criou uma espécie de memorial em homenagem aos que resistiram às ordens dos nazistas, oferece um vislumbre das condições enfrentadas pelos judeus à época.
Diretora da associação de amigos de Markowa, ela viabilizou para uma área perto do cemitério onde está a sepultura dos Ulma a transferência da casa original da família Szilar, outra a proteger judeus da região.
No segundo andar da residência, por trás de maços de feno, uma porta leva a um esconderijo semelhante ao mantido por Jósef e Viktoria. Ali, com estimados 14 m², paredes de madeira que deixavam o ambiente “muito quente no verão e muito frio no inverno” e teto baixo que obrigava sete pessoas a viverem de joelhos, o cheiro de esterco de estábulos ao redor, segundo o relato de um sobrevivente, confundia-se com o fedor dos excrementos dos abrigados. Só saíam dali à noite, quando a situação parecia mais segura.
A coragem dos poloneses que desafiaram as leis alemãs que impunham morte até aos que apenas tentassem ajudar judeus destoa da forma como os Ulma teriam sido descobertos. De acordo com o historiador Marcin Chorazki, que trabalha no museu dedicado à família, provas circunstanciais indicam que, em 1944, Vlodzimierz Les, policial polonês que seguiu atuando nas forças de segurança sob o regime alemão, denunciou o casal, embora não fosse o único na região a saber do esconderijo —a quantidade de comida comprada pela família já despertava suspeitas.
Histórias como a do policial, que antes chegou a abrigar judeus em troca de dinheiro e só deixou de fazê-lo depois de saber que corria risco de morte, geram desconforto diante da maneira como o governo busca retratar o papel de seus cidadãos no extermínio de judeus comandado por Hitler.
Em 2018, o Parlamento aprovou, e o presidente Andrzej Duda chancelou, um controverso projeto de lei que previa até três anos de prisão para qualquer pessoa que acusasse a Polônia de colaboração com o Holocausto durante a Segunda Guerra. Quatro meses depois, porém, após pressão externa, principalmente de aliados como os Estados Unidos, o premiê Mateusz Morawiecki recuou e pediu aos parlamentares que substituíssem a pena de detenção pela punição de ofensa civil, passível da aplicação de multas.
Ainda que a lei se refira a acusações contra o país, não contra indivíduos, a aprovação gerou o temor entre acadêmicos de que a discussão de atos antissemitas cometidos por poloneses seja cerceada.
Em maio, o canadense-polonês Jan Grabowski, professor da Universidade de Ottawa e coautor de “Night Without an End” (noite sem fim), livro baseado em uma pesquisa que revela a colaboração de “um número significativo de cidadãos poloneses para localizar e massacrar judeus”, teve uma palestra no Instituto Histórico Alemão, em Varsóvia, cancelada logo após seu início pelo parlamentar de extrema direita Grzegorz Braun, que disse estar ali para “defender a nação polonesa contra um ataque contra a sensibilidade histórica”.
No mês anterior, quando os 80 anos do Levante do Gueto de Varsóvia foram celebrados, acadêmicos saíram em defesa de Barbara Engelking após a pesquisadora ser criticada por afirmar que “os poloneses poderiam ter feito mais para ajudar os judeus no Holocausto”. O primeiro-ministro Morawiecki, por exemplo, chamou as falas de “opiniões escandalosas, não fatos” e uma “narrativa antipolonesa”.
No final das contas, o governo, de viés nacionalista, teme que os casos revelados pelos pesquisadores se sobreponham às histórias de heroísmo daqueles que resistiram ao regime alemão, o que, na visão do governo, levaria à transferência da responsabilidade dos crimes dos nazistas para os poloneses.
“É complicado”, diz o historiador Mariusz Jastrzab, guia do museu Polin, dedicado à trajetória dos judeus poloneses. “O governo quer focar as partes mais brilhantes da nossa história e fica menos feliz em falar dos que traíram os judeus. Mas também quer ter uma boa relação com a comunidade judaica e Israel.”
A cerimônia de beatificação dos Ulma, a primeira de uma família inteira de uma só vez, deve ter a presença do presidente Duda, que, embora tenha se desligado formalmente do PiS, conta com o apoio do partido. Assim, o evento já foi criticado por, na visão de alguns analistas locais, soar como um comício às portas da eleição para destacar valores defendidos pela sigla —um estado nacionalista, católico e antiaborto.
Nesse último ponto, um aspecto da morte do casal chama a atenção. Ao ser assassinada, em março de 1944, Viktoria estava grávida de seu sétimo filho. Aí entram duas hipóteses, explica Renata Kunysz, guia do museu da família: ela teria dado à luz na hora em que foi fuzilada, devido ao estresse do momento, ou o bebê nasceu depois que já estava morta. Seja como for, o Vaticano beatificará a criança, algo em linha com a ideia de que a vida começa desde a concepção, ideia defendida pela igreja e pelo governo.
Procurada, a embaixada da Polônia no Brasil disse que as perguntas feitas pela Folha sobre possíveis distorções históricas e a hipótese de uso político da beatificação foram enviadas para a chancelaria em Varsóvia e que, por questões de horário, poderiam ser respondidas na segunda-feira (11).
Valdemar Rataj, diretor do museu dedicado à família, rebate as sugestões em torno de a cerimônia se tornar um evento de campanha. Para ele, “nada ainda aconteceu e não há fatos para comentar”. Ressalta, porém, que “se isso ocorrer, seria perigoso para o museu, uma instituição baseada em pesquisas”. Ele destacou ainda que o processo de beatificação começou há cerca de 20 anos e, quando a ideia do museu da família Ulma foi concebida, o governo local, de Markowa, era gerido por um partido hoje na oposição.
“Alguém sempre pode instrumentalizar um tema para uma narrativa, mas lembro aqui a fala do arcebispo de Varsóvia, Nycz Kazimierz, de que essa é a beatificação de uma família específica, não de uma nação.”