Depois de internado em três campos de concentração –um na Espanha e dois na França– o então jovem escritor Arthur Koestler (1905-1983) obteve a ajuda de um misterioso cidadão chamado Ellerman, que em 1940 o ajudou a fugir do Marrocos para Portugal e, em seguida, para seu exílio na Inglaterra.
Ellerman era um agente do serviço secreto britânico, e Koestler soube só muitos anos depois que se tratava do barão alemão Rudiger von Etzdorf, que renunciou à cidadania e ao título de nobreza para, a partir do Reino Unido, combater o nazismo de Adolf Hitler.
A história ocupa uma posição bem periférica em “A Escória da Terra”, um dos livros pouco conhecidos de Koestler que a pequena editora Rua do Sabão traduziu no ano passado. Os episódios testemunhados pelo escritor inglês de origem húngara são incrivelmente intensos.
Outro cidadão com o qual ele se ligou com afeto foi alguém que ele chamava simplesmente de “Mário”, um prisioneiro italiano que conheceu nos quatro meses em que passou no campo Le Vernet. Pois bem, Mário se chamava em verdade Leo Valiani, personagem de peso que agentes britânicos escoltaram clandestinamente até a Itália, onde ele se tornou um dos altos dirigentes da Resistência ao fascismo e integrou o comitê que, em 1945, condenou à morte Benito Mussolini.
Mas o centro do longo ensaio de Koestler não está na junção de personagens curiosos. O que ele aponta e lamenta de forma quase obsessiva é o esfacelamento ético das instituições francesas, às vésperas da invasão alemã, em maio de 1940, e pouco antes da assinatura de um armistício com Hitler que colocou a França nos braços do fascismo.
Koestler vivenciou essa história de muitas maneiras. Primeiro como militante por sete anos, do Partido Comunista Francês. Depois como jornalista da mídia britânica que cobriu a chegada da esquerda ao poder na França, com a Frente Popular de 1936. E em seguida como correspondente da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), em que acabou prisioneiro da Falange Franquista.
Somado ao início da Segunda Guerra Mundial, o período testemunhado por Koestler foi tão intenso que em 1940 ele, com 35 anos, culto e altamente politizado, só funcionava com os nervos à flor da pele. Como judeu, sofria os efeitos do forte antissemitismo irradiado pela extrema direita francesa. E sofria também com uma burocracia cujo poder crescia proporcionalmente à ineficiência do Estado que a criou.
Um exemplo: ao ser libertado do segundo campo francês em que foi internado, Koestler foi obrigado a procurar um atestado de desinternação. Mas o mandaram para quatro repartições em seguida, que, em lugar de resolverem o problema, acabavam por criar novas dificuldades. A tal ponto que, seguindo conselhos de amigos, ele procurou pessoalmente Léon Blum, o primeiro-ministro da então finada Frente Popular. O premiê intercedeu, mas o caso acabou encalhado na instância burocrática seguinte.
Como estrangeiro num país entregue à desenfreada xenofobia, Koestler se satisfaz apenas quando, após a invasão alemã, a chefia do Estado Francês (não é mais a República) é entregue a Philippe Pétain, herói da Primeira Guerra mas já completamente senil e marionete nas mãos dos mais espertos fascistas.
O livro de Koestler passeia pela péssima alimentação de um dos campos de prisioneiros, com internos dormindo sobre camadas finas de capim sob os -20°C da região dos Pireneus.
No campo de concentração anterior o escritor até foi bem alimentado. Mas porque o diretor era honesto e gastava integralmente sua verba na compra de comida. Mesmo assim, os presos ficavam amontoados como bichos. Mais ainda se fossem estrangeiros indesejáveis, como os que até 1939 lutaram na Espanha nas Brigadas Internacionais. A direita francesa os castigava por terem combatido como homens de esquerda e por terem defendido a República Espanhola.
Por que “A Escória da Terra” permaneceu tantos anos inédita ao público brasileiro? Não se trata de uma unânime obra-prima literária como “O Zero e o Infinito”, em que Koestler relata de forma ficcional o processo de que foi vítima um velho comunista que cai na teia dos expurgos de Joseph Stálin.
Mas “A Escória da Terra”, redigido em poucos meses quando o autor chegou à Inglaterra, tem a energia e a força de um imenso desabafo. Koestler sentiu-se traído pela França. E deu a ela o merecido troco.