Um operário larga a marreta no chão após quebrar a vidraça da agência bancária, em Buenos Aires, enquanto uma multidão entra à força no prédio para tentar recuperar seu dinheiro. Uma médica de classe média encontra a ferramenta no chão e a entrega a uma estudante que quebra os caixas automáticos.
Baseados em fatos reais, as cenas de desespero e destruição que tomaram as ruas da Argentina há pouco mais de 20 anos atravessaram diferentes classes de uma sociedade ainda fraturada e são o mote de “Dezembro de 2001”, série no Star+.
Os seis capítulos mostram os bastidores do “corralito” e os últimos dias do governo do presidente Fernando de la Rúa (Jean Pierre Noher), período em que o país teve de enfrentar as consequências de um dos piores momentos de sua história.
Em 2001, em meio a uma grave crise, os argentinos correram aos bancos para retirar seus dólares. No dia 1ª de dezembro, o então ministro da economia, Domingo Cavallo (Luis Machín), que havia feito a política de paridade entre peso e dólar no governo de Carlos Menem, limitou o valor máximo de saques.
“Cavallo nos meteu nisso e é ele quem vai nos tirar”, conclui De la Rúa, em certo momento na série, ao convocar o ministro. O ex-presidente é um personagem mais complexo do que parece. É sereno e vacilante, exceto quando está prestes a tomar a decisão errada.
Ele consegue misturar uma chatice bem-intencionada com a incapacidade de reconhecer uma crise grave vindo em sua direção, para o desespero de outros líderes mais atentos, como o senador peronista Eduardo Duhalde (César Troncoso) e o ex-presidente Raúl Alfonsin.
Ao contrário do Alfonsín de “Argentina, 1985”, filme com Ricardo Darín que concorreu ao Oscar em 2023, o personagem de Manuel Callau na série não é apenas uma voz grave e sem rosto. O primeiro presidente após a volta da democracia é uma figura sólida, respeitada e consultada por governistas e peronistas.
Já Cavallo, como ministro, se mostra um vilão muito competente: consegue jantar calmamente enquanto manifestantes batem panelas vazias em frente à sua casa, não admite ser questionado pelos colegas de gabinete e desconta sua ira nos auxiliares ao ver que as coisas começam a não sair conforme planejou.
Sem conseguir apoio de Washington na busca por mais dólares —em 11 de setembro de 2001, o ataque ao World Trade Center mudaria os rumos da história e colocaria a questão da Argentina no pé da lista de prioridades—, Cavallo vê seu poder derreter e nem De la Rúa parece disposto a bancá-lo mais no cargo.
Com as medidas impopulares em curso, não demorou muito para que os argentinos começassem a atacar os bancos, para retirar o dinheiro à força, e a repressão aos protestos resultou em quase 40 mortos.
A perda de confiança da população no governo rapidamente instala um jogo de enfraquecimento do presidente e uma luta interna da oposição, peronista.
Gravitando o poder, os assessores de cada lado travam diálogos desiludidos sobre como as duas forças que se revezam na Casa Rosada não são tão diferentes assim e apenas passam o bastão presidencial a cada ciclo —uma alternância que parece ameaçada agora, com a candidatura do libertário Javier Milei.
Na série, os bastidores políticos são revelados por Javier Cach (Diego Cremonesi), personagem fictício que trabalha como assessor do Chefe de Gabinete, e “Dezembro de 2001” é baseada no livro “El Palacio y La Calle” (“O Palácio e a Rua”), do jornalista Miguel Bonasso.
Só que falta à ela justamente um retrato mais aprofundado das “calles” de Buenos Aires.
O palácio está sempre lá, onde vemos um presidente fraco e prestes a perder seu mandato. À sua volta, auxiliares arrogantes, impotentes ou apenas esperando uma oportunidade para pular no barco do governo peronista que virá, inevitavelmente, quando De la Rúa abandonar a Casa Rosada de helicóptero.
Sua saída desonrosa, aliás, ficou de tal maneira gravada na mente da população, que ainda hoje se diz algo como ‘já dá para ouvir o helicóptero’, ao se falar de um governo que pode não chegar ao fim.
Mas o roteiro falha ao mostrar apenas como coadjuvantes os argentinos comuns, impedidos de sacar suas economias, sem recursos ou respostas e entregues ao desespero.
Estão lá o líder comunitário que organiza um refeitório público no empobrecido conurbano bonaerense (o entorno da capital), os batedores de panelas e os quebradores de vidraças, mas esses personagens nunca são desenvolvidos plenamente.
A única exceção é a médica, vivida por Cecilia Rossetto, que sofre com a relação distante com o filho assessor da Presidência —e que se sente traída por esse vínculo com o poder não ser suficiente para evitar a desgraça.
Ela consegue navegar entre o afastamento familiar, a tensão no hospital ao tentar salvar os feridos pela polícia e se consagra em uma cena libertadora, ao confrontar o filho na ceia amarga do Natal de 2001.
Os argentinos costumam dizer que aquelas festas de fim de ano foram insólitas: a vida precisava seguir após o inacreditável, mas como? O fantasma daquele ano segue fresco na memória.
Mas na política, a vida seguiu rápido, e a série é competente ao retratar os círculos do peronismo brigando pelo poder naqueles 11 dias em que a Argentina teve cinco presidentes.
Escolhido pelos parlamentares como mandatário provisório, Adolfo Rodríguez Saá (Jorge Suárez) é representado como alguém parece ser tudo que De la Rúa não era: autoconfiante, deslumbrado e com muitas ideias (que não combinou com ninguém). Ao assumir o cargo por 60 dias, decreta moratória e cria uma nova moeda, para renunciar logo em seguida por falta de apoio.
Após passar pelos presidentes da Câmara e do Senado, a faixa vai finalmente parar no ombro de Duhalde, que governará por dois anos. Para amenizar as tensões sociais, ele assume prometendo ao povo que “aquele que depositou dólares receberá dólares”, algo que acabou não acontecendo.
“Foi um erro, as pessoas estavam muito zangadas, mas tínhamos claro que apesar do incumprimento, dos bancos fechados, tínhamos de tomar a medida mais hostil de todas, que era sair da conversibilidade”, diria o verdadeiro Duhalde, 20 anos depois.
Em uma entrevista recente à rádio argentina AM750, o roteirista de “Dezembro de 2001”, Mario Segade, disse que resta uma sensação amarga de impunidade daqueles anos. “Além do ‘corralito’ houve um massacre, 40 pessoas foram mortas e me parece que a Argentina ainda deve uma resposta.”
Às vésperas de uma eleição liderada por Milei, que tem em Cavallo e Menem inspiração para sua proposta de dolarizar o país, os argentinos ainda parecem distantes dessa resposta.