“Estamos lutando contra animais humanos e agindo de acordo com isso”, declarou o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, ao se referir ao corte de todos os serviços básicos (água, eletricidade, gás, comida) na Faixa de Gaza, após os massacres promovidos pelos terroristas do Hamas em território israelense. “Animais humanos” é uma expressão que deveria provocar arrepios na espinha e na consciência de qualquer pessoa, porque ela reproduz um padrão mental antiquíssimo, que está na raiz de todos os genocídios e males semelhantes ao longo da história.
Antes de prosseguir, permita-me reafirmar algumas coisas que deveriam ser obviedades e são meus pressupostos aqui. Primeiro, é óbvio que Israel tem o direito de se defender das atrocidades cometidas pelo Hamas; em segundo lugar, é óbvio que não há justificativa para as condições degradantes e a violência arbitrária que a ocupação israelense impõe aos palestinos faz décadas; em terceiro lugar, é óbvio que tanto israelenses quanto palestinos têm direito ao seu próprio Estado e a viver em paz. Finalmente, estou muito longe de ser especialista em Oriente Médio. Meu foco aqui é muito mais amplo: a maneira como a mesma lógica do discurso de Gallant é um dos grandes combustíveis para atrocidades há milhares de anos.
Em suma, ocorre que o etnocentrismo, o qual parece ser uma característica praticamente universal das culturas humanas, costuma ser acompanhado de algum tipo de desumanização de quem não pertence ao grupo de quem está falando. Isso é particularmente comum no caso de sociedades tradicionais de pequena escala, sem a presença do Estado e com contato relativamente raro com povos muito diferentes delas mesmas.
Nesses grupos, é frequente que o nome dado por aquela sociedade a si mesma signifique simplesmente “gente”, “pessoas”, “seres humanos” —o que sugere que membros de grupos externos não sejam exatamente humanos, ou pelo menos não seres humanos “por excelência”. O mundo é visto por um recorte que separa “nós” de todos os “outros”. É o que se vê no termo grego “bárbaros”, usado para designar todos os que não falavam grego e, portanto, expressavam-se de maneira animalesca ou infantil, dizendo “bar-bar-bar” do ponto de vista dos gregos. Na luta das cidades-Estado gregas contra o Império Persa no século 5º a.C., o inimigo passou a ser chamado simplesmente de “o Bárbaro”.
O mecanismo básico por trás desse tipo de designação foi instrumentalizado e potencializado ao máximo pelas máquinas de propaganda e comunicação de massa do mundo moderno. A desumanização foi combinada a outro instinto ancestral —o nojo diante de doenças, insetos, ratos etc.— e às práticas higiênicas modernas para criar um efeito devastador. Nos anos 1990, em Ruanda, na África Oriental, o genocídio da etnia tutsi foi conduzido sob o lema “Matem as baratas”. E, é claro, o nazismo abusou da metáfora higienista para comparar os judeus a ratos e micróbios causadores de doenças.
“Nós, alemães, que somos o único povo no mundo que tem uma atitude decente em relação aos animais, também assumiremos uma atitude decente quanto a esses animais humanos. Mas é um crime contra o nosso próprio sangue nos preocuparmos com eles.” As frases, pronunciadas num discurso de 1943 a oficiais do grupo paramilitar SS e a membros do Partido Nazista, são de Heinrich Himmler, um dos homens fortes de Hitler (aqui, ele não se refere a judeus, mas a povos da Europa Oriental escravizados pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial).
Israel está muito longe de se igualar aos nazistas, apesar da brutalidade da ocupação. E o Hamas varreria todos os judeus do Oriente Médio, se pudesse. É assustador, porém, ver que a mesma lógica está sendo empregada. É a pior armadilha na qual seres humanos podem cair.
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