Há 25 anos, um desconhecido ex-espião da KGB emergiu das sombras do decadente governo Boris Ieltsin e foi ungido futuro czar da Rússia do século 21. Deixou para trás uma década de humilhação e crise agônica para elevar o padrão de vida da população e resgatar o prestígio internacional do país.
Ao mesmo tempo, esse quarto de século viu o líder tornar-se crescentemente autocrático, solapar a oposição, o dissenso e a liberdade de expressão, sendo considerado por muitos um ditador e pária. Invadiu a Ucrânia e jogou a ordem internacional em um abismo imprevisível, além de arriscar o futuro russo no processo.
Todas essas asserções são verdadeiras, o que apenas torna a figura de Vladimir Vladimirovitch Putin, 71, incontornável. Não há história da Rússia neste século sem seu nome, e ele caminha para em 2028 superar o ditador Josef Stálin (1878-1953) como o mais duradouro líder moderno do país.
Naquele 9 de agosto de 1999, Putin foi apresentado ao mundo como mais um nome cinzento a ocupar o cargo de primeiro-ministro de Ieltsin, sem fazer frente ao mercurial chefe.
“Ieltsin nomeia seu 5º premiê em 17 meses”, estampava como segundo destaque a Primeira Página da Folha no dia seguinte —era outra era geológica na tecnologia, sem a informação instantânea de hoje. O produto do ano era o celular Nokia com o jogo da cobrinha, e a preocupação na manchete do jornal era o dólar a saudosos R$ 1,88.
Alcoólatra, doente e paranoico, Ieltsin (1931-2007) já mal governava. Uma versão muito aceita da história diz que as forças nos bastidores de seu governo, como os serviços de segurança e os politólogos em ascensão, viram em Putin um nome pronto para ser teleguiado.
Se pensaram isso, erraram. O russo, que havia passado pela burocracia do Kremlin e chefiou o FSB, sucessor da KGB, começou sua jornada em meio ao sangue da segunda guerra da Tchetchênia. O risco de desintegração russa no norte do Cáucaso foi afastado.
Isso já mostrava a preocupação de restabelecer a ordem na qual fora criado, a da Rússia forte, no caso dentro da União Soviética. Na KGB, segundo seu ex-superior Nikolai Leonov (1928-2022) disse à Folha, fora um agente medíocre, mas a instituição se pautava pela ideia de controle e estabilidade.
Putin herdou a Presidência de fato na virada para o ano 2000, com a renúncia de Ieltsin, e foi eleito no março seguinte. Seu primeiro governo foi de afirmação lenta, com crises, mas a reeleição de 2004 já viu um líder com mais desenvoltura. Era estrela no Ocidente, cortejado pela estabilidade e pelos hidrocarbonetos.
A progressiva expansão da Otan e da União Europeia, engolindo o antigo sistema de satélites de Moscou na Europa, fez Putin crer que seria enganado como Ieltsin fora. Empoderado pelo boom das commodities e já tendo substituído a cleptocracia do antecessor por um sistema de grupos políticos rivais comandando setores da economia, deitou os alicerces de sua ação futura no famoso discurso de 2007 em Munique.
Lá, denunciou o mundo unipolar pós-Guerra Fria, a hegemonia americana e o que via como expansionismo destinado a tolher a Rússia. Mordeu e assoprou: no ano seguinte, em vez de dar uma canetada para poder concorrer de novo, algo que faria depois, passou o bastão presidencial ao pupilo Dmitri Medvedev.
Na prática, Putin manteve o controle, reassumindo o papel de premiê, e em 2008 foi dada a primeira salva de sua guerra contra o Ocidente, no conflito para evitar a entrada da Geórgia na Otan. Ainda assim, os quatro anos de Medvedev foram de distensão, enquanto Putin expunha o bom físico de então em manicuradas fotos sem camisa.
A volta de Putin ao poder total em 2012 não foi sem traumas: a classe média que fomentou queria ser mais europeia, com liberdades amplas. Aderente de uma visão de destino histórico da Rússia que não pode prescindir do homem forte, o presidente enfrentou protestos gigantes.
Neles nasceu a figura de Alexei Navalni, que nunca teve real envergadura eleitoral, mas que ao longo dos anos passou a encarnar um grito de revolta, só para acabar morrendo na prisão neste ano, após longo calvário judicial.
Logo depois, Putin sagrou-se presidente pela quinta vez com votação recorde. Se surgiu na primeira pesquisa do independente Centro Levada com 32% de aprovação, em 1999, hoje o líder tem 87%.
Em 2022, após oito anos de conflito local, Putin tomou a mais grave decisão de seu mandato ao invadir o vizinho. Fracassou na esperada tomada rápida do país e amargou quase dois anos de más notícias, até chegar a um momento de iniciativa no campo de batalha, ainda que com o atual revés do ataque a Kursk ameaçando sua imagem de defensor da população.
Superou o maior desafio público de toda sua trajetória em junho do ano passado, quando seu aliado mercenário Ievguêni Prigojin liderou um motim contra a malvista cúpula militar. O “chef de Putin”, associado a ele desde os anos 1990, perdeu a batalha e, logo depois, a vida num nebuloso atentado.
Tendo consolidado uma economia militarizada cuja sustentabilidade é vista com desconfiança, que ajudou a levar o desemprego para inexistentes 2,4% (era 14,6% em 1999), mas cujo aquecimento trouxe um repique inflacionário (8,6% anualizados em julho, mas longe dos 36% anuais de há 25 anos), Putin mexeu nas estruturas do poder.
Trocou ministros importantes, sem sinalizar sucessão. Por ora, só Putin desafia Putin. O russo está no zênite de suas forças, o que parece fazê-lo enfrentar aquilo que a neurociência descreve como paradoxo do poder: quanto mais poderosa é, menos disposta a pessoa é a ouvir ou a ser empática.
Isso é uma conclusão não científica, claro, baseada na opacidade do processo decisório do líder, relatado à reportagem por pessoas com acesso ao Kremlin. Mas inexistem sinais de dúvida, como os captados pelo cineasta Vitali Manski no primeiro ano do governo, quando o jovem presidente questionava a sapiência de monarcas em ficar na cadeira até morrer.
Hoje, salvo uma reviravolta imprevisível, Putin encara sozinho o caminho para ficar no Kremlin até 2036, como a Constituição por ele alterada permite em tese. Isso se não pensar além deste horizonte, quando terá 83 anos, como temem os críticos.