O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, afirmou ao Parlamento de seu país nesta quarta (25) que o grupo terrorista palestino Hamas não é terrorista. Com isso, o líder pode selar o fim de um namoro com profundas consequências para a estabilidade do Oriente Médio.
“O Hamas não é uma organização terrorista, é um grupo de libertação, mujahedin travando uma batalha para proteger suas terras e povo”, disse, usando a palavra árabe para “guerreiros santos”, aqueles que lutam por sua fé, que tem enorme ressonância no mundo islâmico.
Com isso, o turco consolida sua posição crítica a Israel na crise, adotando a leitura usualmente feita no mundo árabe, no Irã e na Rússia de Vladimir Putin, país com quem tem um dos relacionamentos mais complexos: é rival e aliado ao mesmo tempo.
As relações com Tel Aviv, contudo, são intrincadas. A Turquia foi um dos primeiros países a reconhecer Israel, já no primeiro ano da existência do novo país. Estimulados pelos EUA, que precisavam da Turquia como aliada durante a Guerra Fria contra a União Soviética por sua posição estratégica vital, no flanco sul do império comunista, os países viram os laços se aprofundarem aos poucos.
Em 2008, a relação chegou ao zênite, com o então premiê Erdogan, já o político de maior importância da história turca desde o fundador do Estado secular em 1923, Mustafá Kemal Atatürk, mediando uma solução sobre o status das colinas de Golã —anexadas da Síria por Israel em 1967.
Naquele ano, a Faixa de Gaza se interpôs pela primeira vez entre Ancara e Tel Aviv. Um ataque israelense ao território, feito sem consulta ao turcos, foi duramente criticado por Erdogan. Dois anos depois, a parceria desandou quando comandos israelenses atacaram um navio com ajuda humanitária turca a Gaza, deixando dez mortos.
A Primavera Árabe de 2011 também pesou nas divergências. Erdogan, político ligado ao conservadorismo islâmico, tinha laços com a Irmandade Muçulmana no Egito —grupo integrista do qual surgiram versões radicalizadas, como o Hamas, e que viria a ocupar brevemente a Presidência do país árabe, só para ser derrubado em um golpe em 2013.
Israel tinha um acordo de paz com a ditadura egípcia desde 1979, e viu com temor a ascensão de elementos fundamentalistas no vizinho. Isso foi resolvido com a tomada do poder pelo general Abdel Fattah al-Sisi, na cadeira até hoje, mas a desconfiança sobre o papel turco só fez crescer.
Os turcos também se opuseram aos israelenses numa disputa regional sobre exploração de gás no Mediterrâneo oriental focada na região de Chipre, ilha dividida entre aliados de Ancara e de Atenas.
Mas a mudança da configuração do Oriente Médio, com o aumento da influência iraniana, a guerra civil síria, a ascensão e queda do Estado Islâmico, acabou gerando uma nova oportunidade de aproximação focada na economia.
Os acordos de paz de 2020 entre Israel e países árabes, particularmente os Emirados Árabes Unidos, estimularam uma nova dinâmica de parcerias comerciais que foram vistas com bons olhos em Ancara. No ano passado, o presidente israelense, Isaac Herzog, visitou a Turquia, e no mês passado Erdogan encontrou-se nos EUA pela primeira vez com Binyamin Netanyahu.
Tudo indicava um novo capítulo de interesse mútuo. Além de trocas econômicas entre países com setores complementares, a Turquia via em Israel um parceiro importante para conter a ambição de Teerã. Nesse campo, já havia uma colaboração indireta, com Tel Aviv fornecendo material militar para o Azerbaijão, aliado de Erdogan no Cáucaso.
As armas foram instrumentais para Baku tomar o controle do enclave armênio de Nagorno-Karabakh, neste ano. No foco turco, além de ganhar cacife numa região que foi dominada pela Rússia por 200 anos, a geração de uma fonte de atração para os 25% de iranianos que são azeris étnicos e podem gerar instabilidade interna na República islâmica.
Agora, a crise em Gaza coloca tudo a perder novamente, em especial pela forte retórica religiosa de Erdogan, cioso do impacto da imagem de muçulmanos mortos por judeus no seu eleitorado.
Mas o trauma nacional do 7 de outubro não será apagado da memória coletiva israelense, e este é um momento em que mesmo ponderações racionais sobre a proporcionalidade da retaliação são vistas em Tel Aviv como equivalentes à defesa do Holocausto.
Poderá caber aos EUA, que já estão tentando calibrar a dosimetria das ações contra Gaza enquanto bancam a guerra de Israel no contexto regional, enviando porta-aviões e caças para a região, buscar no futuro o alinhamento entre Ancara e Tel Aviv.
A Turquia ainda é central para Washington, que a integrou à Otan em 1952 e lá posicionou mísseis nucleares que foram usados como peça de barganha na crise com os soviéticos em Cuba, dez anos depois. Hoje, metade das cem bombas atômicas americanas na Europa está na base turca de Incirlik, que foi usada em diversas campanhas aéreas dos EUA no Oriente Médio.
Para Erdogan, o xadrez tem ainda mais peças. Nesse canto do tabuleiro, ele joga com Putin, que é seu rival presumido na Guerra da Ucrânia já que a Turquia apoia Kiev, mas com quem combinou a nova partilha do Cáucaso pelo Azerbaijão, rifando a Armênia no processo.
Antes da invasão russa, o relacionamento era intenso na área militar, com fornecimento de sistemas antiaéreos de Moscou a Ancara. Ali, pesava o afastamento de Erdogan e Washington, após o então presidente Donald Trump se recusar a extraditar o clérigo acusado pelo turco de inspirar o golpe que debelou em 2016.
Além disso, turcos e russos têm uma miríade de negócios energéticos conjuntos. Adensando o enredo, Putin é também aliado de Teerã e tem bases na Síria, onde coordena com turcos o apoio a grupos rivais na guerra civil —no caso, o interesse de Erdogan é menos o de derrotar a ditadura e mais o de combater os curdos do norte do país, aliados da minoria na Turquia.
A teia de relações só dificulta um rearranjo pela paz. É mais uma vitória tática do Hamas e do Irã nesta crise, já bem-sucedidos em colocar a aproximação de Israel com os árabes moderados em suspenso devido à situação em Gaza.