O Brasil perde uma das maiores lendas de seu futebol. Mário. Jorge. Lobo. Zagallo. Quatro nomes, quatro Copas do Mundo. Difícil não confundir a história deste alagoano com a do próprio futebol. Tinha em si a mistura do brasileiro quando a linguagem é o esporte bretão: personalidade forte, às vezes até turrão, determinado ao extremo….
O Brasil perde uma das maiores lendas de seu futebol.
Mário. Jorge. Lobo. Zagallo. Quatro nomes, quatro Copas do Mundo. Difícil não confundir a história deste alagoano com a do próprio futebol. Tinha em si a mistura do brasileiro quando a linguagem é o esporte bretão: personalidade forte, às vezes até turrão, determinado ao extremo. Tudo com uma grande pitada de superstição em sua paixão desenfreada pelo número 13. Prenúncio de sorte, ele dizia. Um senhor que viajou ao longo de mais de oito décadas e provou sabores e dissabores que o mundo da bola pode proporcionar. Um caminho que ele estava convencido de que fora destinado a cumprir. E o mundo, em parte, a engolir.
“Sou predestinado. Quando o céu está coberto não tem estrela. Agradeço sempre por tudo que conquistei”, disse certa vez o “Velho Lobo”.
Aos 92 anos, nesta sexta-feira (05/01), a lenda do futebol brasileiro deixou a vida para ser definitivamente história, conforme anunciou uma nota de pesar postada em seu próprio Instagram.
E que história. Nascido em Maceió, Alagoas, em 9 de agosto de 31 – 13 ao contrário – chegou ao Rio de Janeiro com apenas oito meses de idade. A família se estabeleceu pelas ruas da Tijuca, Zona Norte da cidade, próximo ao rubro América. Pelas calçadas da Praça Afonso Pena, o garoto assumiu o gosto pela bola. E, destemido, decidiu: seria jogador de futebol.
O problema seria convencer os pais, Haroldo e Maria Antonieta. Na década de 40 fazer da bola um ofício não era visto com bons olhos. Mas, com a intervenção do irmão mais velho a seu favor, conseguiu. Em 1948 ingressou nas categorias de base do América, clube do qual seu pai era sócio. Entre treinos e jogos, Zagallo arrumava tempo para frequentar a sede social. E foi em um dos bailes de confete que conheceu Alcina, sua futura esposa. Com ela, ganhou o 13 em sua vida.
Devota fervorosa de Santo Antônio, celebrado em 13 de junho, Alcina fez de Zagallo o mais ferrenho defensor do algoritmo. O que para muitos era sinônimo de azar, para o então ponta-esquerda era símbolo de sorte. Zagallo exaltava a predileção pelo número, mas dizia ser apenas fé. Com Alcina casou-se em 13 de janeiro de 1955. E o número da camisa passou a ser o mesmo. Coisas de Santo Antônio. Coisas de fé. Não superstição.
No América permaneceu até o ano seguinte, quando seguiu para o Flamengo, time pelo qual se profissionalizou. Diante da concorrência, decidiu deixar o centro do meio de campo para jogar na ponta-esquerda. Ali se encontrou. Em 1950, com 19 anos, servia o Exército quando deixou o Maracanã calado em meio à multidão diante do gol de Gigghia em Barbosa. O Uruguai era campeão do mundo. E o Brasil, garantia Zagallo para si mesmo em meio a tantas lágrimas, também seria. A determinação quase obcecada em levar a pátria ao topo mais alto do futebol desenhou sua trajetória.
Em 1958, lá estava ele entre os convocados de Vicente Feola. Na ponta-esquerda, em um vaivém frenético entre ataque e defesa. Muito disciplinado. De tanto se dedicar recebeu o apelido de “Formiguinha”. Ao lado de Pelé e Garrincha, levou o Brasil ao topo do mundo da bola. Na final, diante da Suécia, fez um dos gols na vitória de 5 a 2. A Jules Rimet estava no alto, em mãos brasileiras, com Bellini.
Zagallo sentiu de novo o gosto de título mundial em 1962, no Chile, com praticamente os mesmos companheiros. À essa altura, já com a camisa do Botafogo, depois de títulos cariocas, a aposentadoria batia à porta. Até chegar em 1965. O jogador virou técnico. A lenda ganhava novos contornos. Primeiro nos juvenis do Botafogo, de onde foi alçado aos profissionais. Mário Jorge Lobo Zagallo já era nome decantado nas ruas do país, mas em 1970 teve de enfrentar a rejeição. Técnico da seleção de tantos astros, o popular e liberal João Saldanha deixara o cargo por supostamente não agradar a ditadura de Emílio Médici.
Zagallo foi chamado para assumir o time. Do banco de reservas, persistiu contras as duras críticas e juntou Pelé, Tostão e Rivellino na mesma equipe. Fez ser possível reunir tantas feras. Depois do fracasso retumbante em 1966, a seleção brasileira voltava ao topo do futebol com o melhor time de todos os tempos, em goleada estonteante de 4 a 1 sobre a Itália. O tri mundial, no México. Era também o terceiro de Zagallo, que ali entrava pela história como o primeiro a ser campeão mundial em duas funções: jogador e técnico.
A glória de 1970 o fez continuar no comando da seleção brasileira. Mas 1974 foi duro. Diante de uma Holanda inovadora, a “Laranja Mecânica” de Cruyff, o Brasil de Zagallo naufragou na segunda fase em meio a tanta novidade. Houve, então, um intervalo na relação dele com a “Amarelinha”, como costumava se referir à seleção brasileira. A carreira de Zagallo continuou como técnico em Flamengo, Botafogo, Kuwait, Arábia Saudita, Botafogo e tantos outros. A seleção continuava em maus lençóis. Parecia aguardar o retorno de estrela e se ressentir falta de relação tão próxima.
Em 1991, ele assumiu o Brasil como coordenador técnico. Uma espécie de escudo para Carlos Alberto Parreira, o treinador. À sua maneira, Zagallo fez funcionar. Durante a campanha do tetracampeonato mundial, nos Estados Unidos, não cansava de se virar para as câmeras e iniciar a contagem regressiva para a conquista. Faltavam sete, cinco, quatro… Até não faltar mais nenhuma. O pênalti nas alturas de Roberto Baggio elevou, também, a carreira de Zagallo. Quatro Copas do Mundo vencidas no currículo. Não era mesmo pouco.
Tanto que, diante da saída de Parreira, ele voltou ao posto de técnico da seleção. Persistente com suas ideias, acumulou críticas. Pressionado durante a Copa América de 1997, na Bolívia, desabafou para as câmeras, dedo em riste, rosto vermelho, olhos furiosos contra seus críticos, em episódio que entrou para a história e virou sua marca quase tanto quanto a superstição pelo número 13.
“Você vão ter que me engolir!”, vociferou após o título.
A frase foi marcada a ferro na biografia, mas, aos 66 anos, Zagallo mostrara ainda ter fôlego para mais batalhas. Na Copa de 98 enfrentou problemas. Primeiro, no corte de Romário, que lhe rendeu uma “homenagem” na porta de um banheiro do bar do atacante no Rio de Janeiro, onde aparecia, em caricatura, sentado em um vaso. A brincadeira de gosto para lá de duvidoso rendeu um processo judicial ao “Baixinho”.
No Mundial da França em si, o Brasil até chegou à final. Suas imagens ao motivar jogador por jogador, com seus poucos cabelos traçando o vento e as veias pulsantes no pescoço, antes dos pênaltis na semifinal contra a Holanda, foram marcantes. Mas a polêmica com Ronaldo, inicialmente cortado do jogo e que teria sofrido uma convulsão horas antes da decisão, fez o cenário ficar pesado. E Zagallo, de novo, se exasperou contra a imprensa após os 3 a 0 retumbantes diante dos donos da casa. Mostrara ali sua personalidade forte, de quem não levava desaforo para casa. Mas, talvez por isso, também se excedia.
“Entrou porque entrou. Tenho moral e personalidade para falar. Vocês devem muito a mim. Estou aqui porque sou homem. Tenho dignidade e caráter”, disparou, com dedo em riste, ao ser perguntado sobre a razão da escalação de Ronaldo. Em seguida, abandonou a coletiva.
Foi o fim de sua passagem no comando da seleção. Mais leve, sem a pressão de um país às costas, retomou a carreira de treinador na Portuguesa, em 1999. No ano seguinte, voltou ao Flamengo, clube do coração. De novo na Gávea, viveu momento histórico. Foi ele o técnico do gol do tricampeonato carioca, de Petkovic, em 2001.
À beira do gramado, camisa rubro-negra com número 13 às costas, andava em êxtase agarrado a uma imagem de Nossa Senhora Aparecida após o gol do sérvio, aos 43 minutos do segundo tempo. O placar? 3 a 1 para o Flamengo. 13, ao contrário. Na arquibancada, ouviu os gritos de “Ih, Ih, Ih, vai ter de me engolir”. O “Velho Lobo” sorria. Parecia, de novo, o garoto das ruas da Tijuca.
No mesmo ano, por maus resultados, deixou o clube e carreira de técnico, de vez. E aquietou-se. Em 2006, voltou a uma Copa do Mundo, novamente ao lado de Parreira, como assistente técnico. Mas a força já não era a mesma de antes. Sua participação foi mais tímida. Desde então, afastou-se do futebol. Mas, sempre que procurado, não se furtava a dar opiniões. Falar de futebol era como falar da própria vida.
No Rio de Janeiro que aprendeu a amar desde menino passou os últimos anos de vida. E com alguns sustos e pesares. Em 2011 e em 2014, foi vítima de assaltos. No primeiro, tão logo foi reconhecido, os bandidos o pouparam. No segundo, não houve nem tempo e o relógio do filho foi levado. Em 2012, perdeu a esposa, Alcinda. No ano seguinte, sofreu um acidente de carro, com pequenas escoriações. Garantia ser forte. E, de fato, era.
Certa vez, ao ser perguntado até quando gostaria de viver, respondeu na lata: 85 anos. Explicou: a soma dos algaritmos daria 13. Mas pensou bem e, com um sorriso travesso, garantiu poder ir até 94, com a mesma lógica. Ficou na primeira opção. A história de Zagallo se entrelaça à das Copas do Mundo.
Quiseram os deuses da bola que o “Velho Lobo” ficasse vivo a tempo de ver um novo Mundial no Brasil, em 2014. Dois anos depois, às vésperas dos Jogos Olímpicos do Rio, causou comoção ao aparecer, muito debilitado, em uma cadeira de rodas no revezamento da tocha. Bem fraco, acenou a todos mansamente três dias antes de ser internado. Mas mantinha a vaidade.
“Uma homenagem é sempre gostoso”, disse após carregar a chama olímpica.
A luta agora era com problemas na coluna e no estômago que avisavam que a idade avançava e o obrigavam a manter a rotina de visitas aos hospitais. Realidade tão distinta de seus tempos na Amarelinha. Neste dia 5 de janeiro, o Brasil perde um ícone. O futebol brasileiro, um dos autores de seus mais belos capítulos. Mário. Jorge. Lobo. Zagallo. Quatro nomes. Quatro Copas do Mundo. E uma história grandiosa.