A cena se repete: um grupo de homens fardados anuncia lado a lado, em rede nacional de TV, a deposição do líder de seu país. Na última quarta (30), foi o Gabão que engrossou a lista de nações que formam a mais recente onda de golpes de Estado na África, composta majoritariamente por ex-colônias francesas.
Das 11 rupturas institucionais no continente nos últimos cinco anos, oito foram em países outrora dominados por Paris. Em nove desses casos, os territórios estavam na porção conhecida como Sahel, a faixa entre o deserto do Saara e as savanas ao sul. O Gabão não compõe a região, mas, em comum com outros episódios, estampou o repúdio a símbolos franceses em atos de apoio aos golpistas.
O Níger, por exemplo, comandado por uma junta militar desde o final de julho, expulsou o embaixador francês no último dia 25, movimento que não surpreende dados os protestos com bandeiras da França queimadas enquanto as da Rússia eram erguidas.
A derrocada democrática na região, porém, não é explicada somente por um sentimento anti-França e está relacionada à fragilidade institucional, à crise social enfrentada após a chegada de grupos jihadistas na década passada e à crescente desconfiança com a política.
Guiné, Níger, Chade, Gabão, Mali e Burkina Fasso, as seis ex-colônias francesas que foram palco de golpes nos últimos anos —sendo que os dois últimos assistiram a duas rupturas institucionais seguidas—, convivem há décadas com um cenário persistente de miséria e insegurança generalizadas e são em parte governados por uma classe política restrita a poucas famílias e líderes de longa data, que mantêm relações estreitas com a ex-metrópole ainda hoje.
Cinco deles estão entre os dez países do mundo com o menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e têm um PIB per capita, considerando paridade do poder de compra, abaixo de US$ 3.200 —no caso do Níger, menos da metade disso, US$ 1.505. O único destoante é o Gabão, com US$ 16.470, não muito distante do Brasil, com US$ 17.821.
Engrossa esse caldo a proliferação de grupos islâmicos armados na região vindos de outros quadros regionais de crise, como os conflitos da Líbia, que começam em 2011, e a rebelião da população tuaregue no norte do Mali, em 2012.
A resposta à insurgência islâmica foi a Operação Barkhane, que abarcou os territórios de Mauritânia, Mali, Burkina Fasso, Níger e Chade sob a liderança de militares franceses, mas fracassou na missão de impedir a proliferação da insegurança na região.
Isso contribuiu para o fortalecimento de discursos que associavam a presença militar de Paris não ao combate a esses grupos extremistas, mas ao fortalecimento deles. “Com a chegada dos grupos jihadistas e a crescente presença de forças militares internacionais, o sentimento antifrancês aumentou consideravelmente”, diz Tatiana Smirnova, pesquisadora da região do Sahel na Universidade de Quebec.
A Operação Barkhane acabou em novembro de 2022, e as tropas francesas foram expulsas de Burkina Fasso e Mali após os golpes. Atualmente, Paris tem uma base militar no Djibouti —assim como EUA, China e Japão, entre outros— e mantém tropas também em Senegal, Costa do Marfim, Gabão, Chade e Níger. Neste último, são de mil a 1.500 soldados, e o país se nega a retirar suas forças a despeito das exigências dos golpistas.
“Os soldados franceses posicionados no Níger estão ali a pedido das autoridades nigerianas legítimas, para lutar contra os grupos terroristas que desestabilizam a região e castigam a população do Sahel”, afirmou o Ministério de Defesa da França no início de agosto.
A frustração também remonta aos processos de descolonização dos países. A França buscou primeiro uma espécie de assimilação, com a abertura de cadeiras na Assembleia Nacional francesa a lideranças dos territórios coloniais —que acabaram controlando por décadas a política na região, com a bênção de Paris.
Depois, a solução encontrada foi a aceitação das independências sob a condição de que as nações concordassem com uma série de acordos que as manteve, na prática, vinculadas ao colonizador.
“Diferentemente do modelo colonial britânico, a França desenha arranjos que amarram os novos países”, diz Guilherme Ziebell, professor de relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Havia acordos securitários que, em muitos casos, previam a possibilidade de intervenção militar francesa sem necessidade de consulta.”
Outro exemplo é a criação do franco CFA, moeda inicialmente emitida pela França e utilizada por ex-colônias até hoje, agora sob autoridades monetárias regionais.
“Os franceses não abandonaram o pensamento colonialista e ainda pensam que estão em uma missão civilizatória”, afirma Pio Penna Filho, professor da UnB (Universidade de Brasília), para quem as juntas golpistas se aproveitam do sentimento de frustração.
“Elas levantam uma bandeira antifrancesa e antieuropeia para mobilizar a população e justificar a tomada de poder. E a Rússia aproveita para insuflar esses militares contra a França e a Europa.”
A tarefa de Moscou é facilitada pela memória que parte da população tem do papel da União Soviética na luta dos países africanos pela independência, segundo Tatiana Smirnova. “O Kremlin também constrói a sua campanha de comunicação sobre essa nostalgia.” A presença do grupo mercenário russo Wagner em países da região reflete em parte essa estratégia.
O apoio da população aos golpes, porém, pode ser difícil de medir.
No Níger, manifestantes favoráveis ao presidente Mohamed Bazoum foram dispersados com tiros de advertência logo após o golpe. Eles tentavam se aproximar do palácio da Presidência, onde o governante estava detido.
O golpe mais recente, no Gabão, pode ter encerrado uma dinastia que remonta aos anos 1960. Uma única família governava o país africano há 56 anos: Omar Bongo se manteve na liderança por 42 anos, até sua morte, em 2009, e Ali Bongo sucedeu o pai até ser deposto.
“É uma ditadura travestida de regime democrático, mas nada justifica a tomada de poder pelos militares”, diz Penna Filho.