O novo governo da África do Sul traz consigo um forte aspecto de nostalgia, e não é por acaso. Há vários paralelos com o que foi formado 30 anos atrás, quando a nação arco-íris comovia o mundo após o fim do apartheid.
Os tempos atuais são bem mais pessimistas, e uma coalizão entre legendas no papel totalmente incompatíveis –algo como o PT se unindo ao Novo– é uma cartada ousada para repetir a façanha de 1994.
Na ocasião, o ex-prisioneiro político Nelson Mandela, do Congresso Nacional Africano (CNA), uniu-se ao Partido Nacional, representante da minoria branca, num governo de união nacional.
Também fazia parte da coalizão o Partido da Liberdade Inkhata, cuja base social é a numerosa etnia zulu, que havia travado intensos e mortíferos embates com militantes do CNA em favelas país afora.
Um dos principais representantes de Mandela naquelas tortuosas negociações era um habilidoso sindicalista chamado Cyril Ramaphosa.
Trinta anos depois, o país não vive uma situação de tensão social tão extrema como a da transição do apartheid para a democracia, mas está soterrado por problemas que incluem desemprego, corrupção, violência e precariedade no fornecimento de serviços básicos.
A surra que o CNA levou na eleição de 29 de maio, pela primeira vez ficando abaixo da maioria dos votos, obrigou o partido a engolir o orgulho e buscar uma coalizão.
Ramaphosa, hoje presidente após ter ficado milionário como empresário, mostrou ser uma figura mais astuta do que sua imagem de governante indeciso fazia supor.
Se o gesto mais fácil seria se unir a legendas ainda mais esquerdistas que o CNA (comparáveis a PSTU ou PCO), ele preferiu fazer novamente a aposta na reconciliação, buscando o “efeito Mandela”.
Agora, os parceiros são duas legendas que muitas vezes são vistas como descendentes diretas do antigo partido dos brancos: a Aliança Democrática, que ficou em segundo lugar e carrega a bandeira do Estado mínimo.
Para completar o gosto retrô da coalizão, também está de volta o Partido Inkatha, embora hoje seja uma força política e social bem menos expressiva do que era há três décadas.
Há uma diferença fundamental, no entanto. Se, em 1994, apenas grupos extremistas (negros e brancos) apostavam contra a união nacional, agora o sentimento de que este caminho está fadado ao fracasso é muito mais expressivo.
Dois partidos, em especial, deverão estar na linha de frente da oposição ao novo governo do CNA: o MK, do ex-presidente Jacob Zuma, que surpreendeu ao ficar em terceiro lugar na eleição, e o Combatentes da Liberdade Econômica, que ficou em quarto.
Ambos dissidentes do CNA, avaliam que Mandela exagerou na moderação há 30 anos e que o apartheid sobrevive hoje com roupagem econômica, do que seriam prova milhões de desempregados no país.
Ramaphosa, por sua vez, conseguiu se manter no cargo, ao menos por ora, ao incluir na costura pela coalizão essa exigência. Nesta sexta, ele foi reeleito para o segundo mandato na Presidência ao obter 283 dos 400 votos no Parlamento.
“Hoje, a África do Sul é um país melhor do que era ontem. Pela primeira vez desde 1994, embarcamos numa transferência pacífica e democrática de poder para um novo governo que será diferente do anterior”, disse em discurso na televisão o líder da AD, John Steenhuisen, membro da minoria branca do país.
O governo de união nacional entra agora numa nova fase, não menos delicada, de divisão de ministérios e espaços de poder.
Também não está claro como será possível conciliar ideologias tão díspares numa administração minimamente coerente. Mas haverá boa vontade da comunidade internacional e nos agentes econômicos, aliviados com a saída pela direita.
Em 1994, a união dos opositores levou a 15 anos de progresso econômico e social na África do Sul, antes que o país iniciasse um acelerado processo de decadência. Ramaphosa tenta repetir o enredo, apostando que a história não se repetirá como farsa.