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África do Sul repensa legado de Nelson Mandela – 28/04/2024 – Mundo

Não muito longe da rua Vilakazi, onde a casa em que Nelson Mandela morou foi transformada em um museu-santuário, Kenneth Khoza está fazendo campanha para o Lança da Nação (MK, na sigla em zulu), um novo partido político nomeado em homenagem ao antigo braço armado do Congresso Nacional Africano (CNA, o partido do próprio Mandela). “Mandela era falso”, ele diz. “Ele nos traiu.”

Chris Lebona, que nasceu e cresceu na agora famosa rua em Soweto, é um apoiador do MK. Ele culpa Mandela por persuadir o CNA, na época o principal movimento de libertação, a suspender a luta armada em 1990 antes da conclusão de um acordo pós-apartheid para acabar com o governo de minoria branca.

“O CNA não é um homem só, e ele começou a negociar fora das estruturas do partido”, diz Lebona, referindo-se às negociações secretas que Mandela realizou inicialmente com o então presidente FW de Klerk quando ainda era prisioneiro. “Fomos enganados”, acrescenta, refletindo uma visão comum de que a maioria negra foi prejudicada pelos termos da transição. “Foi aí que o problema começou, e o CNA sofreu as consequências ao perder o apoio do povo.”

Trinta anos após o fim do governo de minoria branca e semanas antes de uma eleição que pode privar o CNA da maioria absoluta que comanda desde 1994, o fato de algumas pessoas questionarem o legado de Mandela destaca a profunda desilusão que muitos sul-africanos sentem em relação ao seu país.

Para a maior parte do mundo, Mandela continua sendo um gigante moral cuja disposição em perdoar seus opressores brancos foi a chave para desbloquear um fim negociado ao sistema moralmente falido do apartheid. Na África do Sul, o legado de Mandela como pai da luta pela libertação também tem resistido. Muitos acreditam que sem a habilidade quase santificada de Mandela de negociar com seus opressores, o país poderia ter mergulhado na violência e nunca ter feito a transição para a democracia.

Mas alguns jovens nascidos após o fim do apartheid querem respostas sobre o que deu errado em um país onde a cada dois jovens um está desempregado, a criminalidade é generalizada e a desigualdade associada à identificação racial permanece evidente. O otimismo dos primeiros anos pós-apartheid se esvaiu para ser substituído por desafeição e a convicção de que a velha guarda do CNA deveria ter tomado medidas mais radicais para corrigir os erros da era do apartheid.

“Minha geração acredita que Nelson Mandela foi um vendido”, diz Busisiwe Seabe, uma ativista nascida em 1994, o ano em que Mandela se tornou presidente após a vitória do CNA nas primeiras eleições multipartidárias do país. “Ele abandonou a busca pela libertação negra, incluindo a emancipação econômica.”

À medida que a economia sul-africana entra na segunda década de estagnação —praticamente não houve crescimento em termos per capita desde 2008— e as oportunidades diminuem para os sul-africanos negros sem conexões políticas, um número crescente de pessoas está começando a culpar Mandela e os líderes da era da libertação. No cerne disso está a acusação de que Mandela permitiu que os brancos mantivessem a riqueza e o privilégio que acumularam sob um sistema racista que mantinha os negros pobres e sem educação de propósito.

Embora se espere que o CNA saia das eleições de 29 de maio ainda como o maior partido, pesquisas mostram que uma crescente insatisfação com seu desempenho poderia levá-lo a ficar abaixo de 50% nacionalmente, inaugurando uma nova era potencialmente volátil de política de coalizão.

A erosão da reputação de Mandela tem sido acompanhada por outro fenômeno: o aumento da apreciação por Winnie Madikizela-Mandela, uma feroz ativista contra o apartheid que foi esposa dele durante seus 27 anos de encarceramento. “Ela representa um meio alternativo de entender nosso atual predicamento”, argumenta Seabe. “Alcançar a liberdade política não significou nada sem a liberdade econômica.”

“O que está borbulhando é um sentimento de que fomos enganados, de que fomos ludibriados e de que essa promessa será adiada para sempre”, diz Joel Modiri, jurista e professor de direito da Universidade de Pretória, referindo-se à crença agora desvanecida de que o fim do apartheid traria oportunidades econômicas reais para a maioria negra. Em vez disso, diz ele, a maioria dos negros permanece presa em bairros pobres com uma educação de baixa qualidade e poucas perspectivas de emprego.

A geografia da segregação racial do apartheid persiste e serviços como eletricidade e água estão à beira do colapso devido ao subinvestimento crônico, à corrupção e ao vandalismo. Tudo isso está “criando descontentamento em relação ao CNA, à comunidade branca e aos estrangeiros”, diz Modiri. “A transição colocou a reconciliação à frente da justiça e certas questões importantes foram abafadas. E agora elas estão retornando de forma virulenta.”

A explicação padrão para os atuais problemas da África do Sul é que o CNA gerenciou razoavelmente bem a transição econômica e política nos primeiros 15 anos, quando buscou investimentos estrangeiros e supervisionou um crescimento econômico de até 5% ao ano.

Quando Jacob Zuma se tornou presidente em 2009, essa visão sustenta que o CNA mergulhou na corrupção e no clientelismo, as instituições do país foram erodidas e o crescimento estagnou. Um tecnocrata sênior e apoiador vitalício do CNA compara os últimos 30 anos a uma partida de futebol com uma boa performance no primeiro tempo e uma série de gols contra no segundo.

Mas muitos sul-africanos questionam essa visão da era pós-apartheid. Sisonke Msimang, analista política que escreveu um livro sobre Winnie Mandela, é uma das muitas pessoas que argumentam que o CNA foi muito tímido desde o início ao buscar uma agenda econômica mais progressista. Em vez disso, o governo de Mandela adotou a ortodoxia neoliberal da época, diz ela.

Esperando capitalizar as frustrações com o CNA estão dois partidos que oferecem uma visão mais radical de como a África do Sul deve ser governada. O primeiro é o MK, liderado pelo ex-presidente desonrado Zuma, e o segundo é o Combatentes da Liberdade Econômica (CLE), chefiado pelo jovem líder dissidente do CNA Julius Malema.

Juntas, as duas siglas poderiam acumular 20% dos votos nas eleições do próximo mês. Ambos os partidos aderem a um programa conhecido como “transformação econômica radical”, que prevê um desafio sistemático ao “capital monopolista branco” por meio da expropriação de terras e imposição de mais controle sobre os setores dominantes da economia, incluindo possivelmente o banco central.

Não são apenas aqueles que estão pressionando por soluções radicais para os problemas do país que perderam a fé na visão de Mandela de uma nação arco-íris harmoniosa. Também houve um aumento do populismo e da xenofobia, que vai contra os princípios de tolerância e pan-africanismo de Mandela, a crença de que os africanos em todo o continente devem se unir.

Isso levou a uma infinidade de novos partidos constituídos com base em linhas étnicas estreitas. A Aliança Patriótica apela principalmente para comunidades que se identificam como “coloured” (coloridos), algumas das quais se sentem marginalizadas pela maioria negra. [A classificação, criada no apartheid, geralmente se refere a pessoas não brancas de ascendência mista, e o uso do termo pode ser considerado controverso].

O líder da Aliança Patriótica, Gayton McKenzie, um ex-assaltante de banco, foi acusado de usar a pauta identitária como estratégia política e prometeu reduzir pela metade o desemprego jovem “deportando em massa” imigrantes em situação ilegal.

Enquanto isso, a Frente da Liberdade Plus (FF Plus), um partido de direita africâner, apoia a independência do Cabo Ocidental, a província que inclui a Cidade do Cabo, do restante da África do Sul.

A reavaliação do legado de Mandela tem sido acompanhada por um ressurgimento da apreciação por Winnie, que foi colocada em confinamento solitário, torturada e enviada para um exílio interno remoto pelas autoridades do apartheid.

“Ela suportou o peso dos ataques do regime do apartheid contra os negros”, diz Jonny Steinberg, autor de “Winnie & Nelson”, um livro que reexamina o legado de ambos. “Ela disse: ‘Eu estava fisicamente engajada com o inimigo porque meu corpo estava sendo espancado enquanto você [Nelson] estava envolvido em um casulo.’ A história dela era que ele negociou o futuro de seu povo porque ele não era mais verdadeiramente uma pessoa negra, ele havia se transformado em outra pessoa dentro da prisão, enquanto ela era a personificação do sofrimento do povo.”

No Ocidente, o apelo de Winnie como uma combatente valente contra o apartheid foi gravemente manchado por seu apoio ao uso da violência, incluindo sua defesa de uma prática conhecida como necklacing, matando suspeitos de serem informantes colocando pneus de borracha em chamas em volta de seus pescoços.

Mas na África do Sul, a morte de Winnie em 2018 provocou um ressurgimento de sua reputação e sua adoção como um ícone por Malema, líder do CLE. Em sua recusa em comprometer-se com seus opressores, muitos jovens negros sul-africanos passaram a vê-la como uma metáfora para o caminho não seguido.

Seabe, a ativista nascida em 1994, argumenta que Winnie não acreditava na agenda econômica de seu marido, que preservava muitas das estruturas e instituições da era do apartheid. “O governo do CNA falhou com os negros sul-africanos ao negociar algo que não traria benefícios tangíveis. Ainda vivemos na miséria, ainda vivemos na pobreza amontoados nos townships como sardinhas e ainda somos submetidos ao racismo institucional”, diz.

Se Winnie representa a aspiração a uma alternativa econômica mais radical, não está claro o que isso significaria na prática, diz Steinberg. Para o autor, ela representa “populismo destilado e um conjunto de sentimentos; não se destina a ser traduzido em detalhes do que fazer”.

Ainda assim, o desejo de culpar Mandela por supostos erros existe até mesmo no local onde ele cresceu em Qunu, um vilarejo rural na província do Cabo Oriental. Londiwe Khubeka, 30, diz que foi ensinada a endeusar Mandela. Mas, à medida que cresceu, suas opiniões mudaram. “O legado de Mandela tem sido muito questionado, e eu compartilho os mesmos sentimentos de que ele nos deu liberdade política e não liberdade econômica.”

Winnie, acrescenta Khubeka, era “destemida, determinada e sem desculpas”. Ela nunca teria sido tão criticada se fosse um homem, diz ela, e sua aviltação, inclusive por seu marido, “roubou das jovens um modelo a seguir”. Muitos sul-africanos mais velhos que viveram a luta contra o apartheid são enfáticos ao afirmar que a geração mais jovem está completamente errada.

“Quando as pessoas dizem que Mandela fez concessões, é completa bobagem”, diz Mavuso Msimang, um veterano de 82 anos do Lança da Nação original, o braço armado do CNA. Mandela, para ele, conquistou tudo o que o CNA sempre quis, incluindo o direito a um voto por pessoa e até mesmo o direito de expropriar terras sem compensação, o que está previsto na Constituição mas nunca foi usado efetivamente.

“Onde as coisas deram terrivelmente errado remonta ao início, quando o CNA se tornou vulnerável à corrupção. Falhamos em gerenciar o poder”, diz Msimang. Ele acusa líderes como Zuma e Malema de disfarçarem seu desejo de saquear o Estado em termos ideológicos. “Malema é um demagogo. Se ele algum dia ganhar poder, será o caos.”

Tembeka Ngcukaitobi, um estudioso do direito, concorda que o CNA errou, não porque Mandela de alguma forma desviou o partido, mas porque o partido abandonou os valores fundamentais que ele representava, incluindo honestidade e não racialização. “A estratégia de Mandela era que havia certas coisas que você não conseguiria alcançar imediatamente, mas você tinha que criar espaço político suficiente para alcançá-las ao longo do tempo”, diz.

Moeletsi Mbeki, analista político e irmão de Thabo Mbeki, que sucedeu Mandela como presidente, diz que a existência de uma grande subclasse negra ajudou a preservar a longevidade política do CNA. O sistema de subsídios —por meio do qual 27 milhões dos 60 milhões de habitantes da África do Sul recebem alguma forma de seguridade social— garante lealdade ao partido, especialmente em áreas rurais, diz.

Nokwanele Balizulu, uma chefe tradicional de Qunu, era a vizinha mais próxima de Mandela quando ele se aposentou em seu vilarejo natal após deixar o cargo. Proprietária de pequeno negócio, agora na casa dos 50 anos, administra uma pequena loja de conveniência em frente à sua casa. Sua saia florida é combinada com uma camisa do CNA.

Ela afirma que há espaço no panteão do CNA para ambos os Mandelas. Nelson ajudou seu marido, que era um prisioneiro político na Ilha de Robben, enquanto Winnie foi uma torre de força durante aqueles anos difíceis. “Ela me visitava frequentemente e me dizia para ter coragem porque ele estava na prisão por uma causa justa. Ela lutou por muitas mulheres rurais que não tinham voz”, diz Balizulu.

A ex-vizinha de Mandela rejeita a ideia de que os anciãos do CNA geriram mal a transição. “As coisas estavam ótimas nos primeiros cinco anos de Mandela como presidente. Eu queria que ele pudesse ter continuado por mais um mandato”, diz.

Para ela, os erros vieram depois. “Muitas coisas não deram certo. Muitos projetos falharam.” Ainda assim, uma série de problemas, desde a falta de água corrente até o crime juvenil, não a impedirão de votar no CNA novamente.

Steinberg, o autor de “Nelson & Willie”, diz que apesar da frustração dos jovens sul-africanos e das falhas evidentes do CNA, não se deve subestimar o poder de permanência do partido que derrubou o apartheid. Aconteça o que acontecer na eleição do próximo mês, ele estima que o CNA receberá o dobro de votos do próximo maior partido. “Há um profundo sentimento de interior, que ainda considera Mandela como precioso e o CNA como tendo, em certa medida, mudado o mundo.”

Fonte: Folha de São Paulo

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