Segundo país que mais recebe afegãos que fogem do regime do Talibã e do colapso econômico, o Paquistão anunciou uma nova política migratória, descrita como uma “repatriação gradual”, que pode expulsar cerca de 1,7 milhão de afegãos de seu território.
A medida aumentou a preocupação de migrantes no país, muitos dos quais já relatavam ser alvos de abusos e coação por policiais. E reflete também no Brasil. ONGs relatam que estão recebendo ainda mais pedidos de ajuda de afegãos que, vivendo no Paquistão, tentam emigrar para o Brasil com o visto de acolhida humanitária.
Aqueles que desejam solicitar o visto brasileiro, no entanto, estão impossibilitados. A embaixada de Islamabad —uma das duas únicas, além da de Teerã, que acolhe pedidos— não está recebendo solicitações.
A representação consular aguarda o governo brasileiro publicar edital com as novas regras para concessão de vistos humanitários para voltar a operar. Nesse meio-tempo, afegãos que estão no Paquistão relatam se sentir ainda mais inseguros.
A política foi alterada pelo governo Lula no final do mês passado, e sua falta de detalhamento levou a uma ampla desinformação.
O principal ponto de dúvida está no trecho que diz que a concessão de vistos estará sujeita à existência de vagas para abrigo por organizações. A informação deu margem para a interpretação de que, para vir, o migrante deve ser “convidado” por alguma ONG ou receber algum tipo de “carta de patrocínio”, o que não é o caso, segundo o Itamaraty.
A pasta disse à Folha que todos os pedidos realizados na embaixada de Islamabad até 1º de outubro passado seguem sendo processados normalmente. O posto concedeu 4.041 vistos a afegãos desde a implementação de sua política de acolhimento para migrantes da nacionalidade, em setembro de 2021.
Hamid Liyaqat, 35, é um dos que tentam deixar os arredores de Islamabad e emigrar para o Brasil. No país com a esposa, os três filhos —de 7, 4 e 2 anos—, a mãe e três irmãs, ele diz que não se sente seguro e não vê oportunidades. Os filhos e suas irmãs mais novas, de 13 e 16 anos, não conseguem frequentar o ensino público de educação.
O afegão deixou a província de Bamyan, onde vivia, logo após o Talibã retomar o poder, em outubro de 2021, rumo ao Paquistão. O restante da família se juntou a ele pouco depois, mas não sem antes sentir o impacto da repressão do regime fundamentalista —ele relata que oficiais invadiram sua casa e agrediram sua mãe.
Hamid trabalhava como vice-diretor da polícia civil de Bamyan junto a um projeto do Pnud, o programa da ONU para o desenvolvimento. Mas a rixa do Talibã com sua família vem de antes. Seu pai, relata, era membro da polícia nacional e foi assassinado por talibãs em 2013.
O próprio Hamid chegou a ser sequestrado pelo grupo em 2020, quando fazia o percurso com destino à capital Cabul junto com a mulher, então grávida de seis meses, segundo documentos oficiais do governo da época que o afegão compartilhou com a reportagem.
Hamid diz que já solicitou o visto mais de uma vez e aguarda resposta. A imigração é não só uma tentativa de buscar mais oportunidades, como de proteger a família dos abusos policiais que ela enfrenta. “Temos muito medo. Ficamos quase 24 horas por dia em casa. Se saímos, policiais nos param e exigem dinheiro. Se não damos, nos ameaçam até com a expulsão. Estão nos humilhando.”
Ahmad (nome fictício) relata situação semelhante. O afegão cruzou a fronteira com o Paquistão em novembro de 2021 e diz que corria riscos por ser cristão —o Talibã lidera um regime fundamentalista islâmico. Ele afirma que há dois anos solicitou o visto brasileiro, mas que ainda não teve resposta.
O desespero bateu à porta de fato nesta semana, após o governo local anunciar as deportações. Ele, que mora na cidade de Rawalpindi e prefere não revelar a identidade por questões de segurança, diz que, se for pego pela polícia, será entregue ao Talibã e morto.
Procurada, a embaixada do Paquistão no Brasil disse que as acusações sobre a ação de seus policiais são “totalmente sem fundamento e fora de contexto”.
Nesta terça-feira (3), o Paquistão anunciou que todos os migrantes em situação ilegal no país devem sair de forma voluntária até o final de outubro se quiserem evitar prisão e deportação forçada. Autoridades afirmaram que uma linha telefônica seria criada para que pessoas possam denunciar esses migrantes em troca de recompensa.
A política foi anunciada após uma série de ataques no Paquistão a poucos meses das eleições de janeiro. Os atentados são orquestrados por militantes islâmicos e se tornaram mais frequentes desde 2022, quando foi rompido um cessar-fogo entre o governo e o Tehreek-e-Taliban Pakistan (TTP), o talibã paquistanês.
Os extremistas tentam pressionar as autoridades a implementarem um regime com base na sharia, a lei islâmica, espécie de marco moral com base no Alcorão.
Na semana passada, dois atentados suicidas mataram mais de 60 pessoas durante uma celebração religiosa do aniversário do profeta Maomé. Na ação mais letal, em janeiro, mais de cem foram mortos em um atentado a uma mesquita em Peshawar —o local sagrado ficava em um complexo que abriga prédios oficiais.
O governo afirma que hoje 4,4 milhões de afegãos vivem no Paquistão, sendo 1,7 milhão sem documentação. Dados do Acnur, a agência de refugiados da ONU, por sua vez, indicam que há 3,7 milhões de afegãos.
O regime talibã chamou de “inaceitável” a ação paquistanesa. À Folha a embaixada do Paquistão no Brasil disse que a política de repatriação vale para todos os migrantes em situação irregular, não apenas os afegãos, e que essa ação é válida perante “as leis soberanas do país”.
Grande parte dos afegãos que buscam o Brasil sai do Paquistão, país que compartilha uma fronteira de mais de 2.600 quilômetros com o Afeganistão. Segundo dados públicos da OIM, braço da ONU para migrações que apoiou a vinda de ao menos 439 afegãos para o Brasil, 80% deles saíram do Paquistão antes de desembarcar no país —outros 17% saíram do Irã, país com maior diáspora afegã (4,5 milhões).