Quinze de janeiro, 7h30. Estação do Oriente. Lisboa. Aquele friozinho atlântico úmido entra como faca fria pelos ossos, quase nos fazendo querer deixar tudo e voltar imediatamente para o calor dos trópicos.
Mas aí a gente fica pensando na elegância do velho continente, em seus predicados de segurança e conforto, sua educação cuidada e saúde pública acima da média brasileira e quase perdoa a invernia lusa nos dispondo a esperar a primavera.
Mas eis que uma viagem de ônibus nos põe a pensar.
Num mundo onde o silêncio se tornou um artigo de luxo, uma viagem de autocarro —como se designa um ônibus em Portugal— pode transformar-se numa sinfonia de desconfortos, desafios à nossa paciência e epifania para o tempo presente.
Foi o que aconteceu nessa jornada, sob o teto móvel de um moderno Marco Polo, saindo da capital portuguesa, passando pelo santuário de Fátima, com destino final na Covilhã, uma cidade de montanha sede de uma das poucas universidades públicas lusas com autorização para fazer doutores em medicina com reconhecimento europeu. São menos de uma mão cheia.
Foi nesse périplo que alguns passageiros mostraram notas dissonantes, atitudes rudes e invulgares deselegâncias, contribuindo em conjunto para uma inesperada orquestra de ruídos e desrespeitos.
O prelúdio desta sinfonia começou com um passageiro, cujo telemóvel tocava uma melodia estridente e incessante, desafiando o conceito de espaço compartilhado.
Em seguida, vieram as chamadas de vídeo sem fone de ouvido, cada uma competindo pela atenção do público cativo. As vozes todas se elevavam, tentando superar a cacofonia reinante. Mas era esforço vão.
Em crescendo, o ápice se atingiu quando passamos pelo santuário de Fátima. Rumando ao norte embarcou um jovem sacerdote, homem de feições serenas mas voz aguda e juntou suas preces ao restante caos.
Orava tão alto que suas palavras eram mais um bramido de torcida de futebol do que um convite a qualquer reflexão espiritual.
O sagrado e o profano assim misturados, sem qualquer nexo, criavam um lugar onde a fé se vestia de alvoroço e o respeito pelo outro não tinha lugar. Cada um trancado em sua bolha sonora, indiferente ao mundo ao redor. Nem Deus escapava.
Independentemente da origem dos personagens desta história —havia de todos os continentes da lusofonia—, este concerto de desconsiderações, em plena Europa, faz pensar.
A comunicação, na sua forma mais nobre, vem hoje acompanhada por um ruído constante que mostra como já não valorizamos o silêncio, não respeitamos o espaço alheio e não entendemos que a nossa liberdade termina sempre onde começa a do outro.
A viagem de ônibus torna-se metáfora ambulante da sociedade atual, onde o respeito mútuo e a cortesia vão sendo lentamente substituídos por uma urgência de nos fazer ouvir, seja onde for, custe o que custar.
Mas, afinal, quando foi mesmo que perdemos a consideração pelo próximo?
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