Eu podia estar trabalhando, eu podia estar estudando, eu podia estar traçando objetivos para 2024, mas não: tô aqui vendo roupinha rasgada com-mais-furo-que-pano de 2 mil euros na internerd.
Podia ter parado na primeira jaquetinha jeans destruída coberta de lama por 3 mil dólares, mas não consegui resistir e segui adiante.
No — hmm — buraco negro das buscas googlianas infinitas, fui topando com:
– calças jeans comidas pelo pitbull do vizinho (2300 doletas, pouco mais de R$ 11 mil);
– tênis pós-apocalipse devidamente pisoteados, surrados e pichados pelos últimos sobreviventes replicantes do blade runner (e pelo artista Léopold Duchemin, edição limitada de 100 unidades, média de R$ 8 mil);
– moletons esburacados (uns R$ 6 a 8 mil à época de seu lançamento, em 2021);
– uma saia que é literalmente uma toalha enrolada na cintura (R$ 4.500, por TODOS OS SABONETES LUXLUXIII!). O não-banho mais caro da tua vida!!!
[a essa altura, já em plena viagem astral, eu já não era eu, e continuei clicando, abrindo janelas, procrastinando deadlines…]
Em comum, todos os itens supracitados saíram, não de um coletivo punk, mas de uma mesma maison de luxo, uma das mais-mais do planeta: Balenciaga, a centenária casa de origem espanhola adorada por gentchis famosis e eternizada em obras almodovarianas (vide Tilda Swinton no gloriostático vestido vermelho do curta La Voz Humana, de 2020).
Me pergunto o que o pai da marca, o basco Cristóbal Balenciaga (1895-1972), opinaria se estivesse vivo e topasse com todo esse catálogo destroyer levando o seu sobrenome.
Balenciaga, uma lenda da alta-costura, foi inspiração crucial para o filme Trama Fantasma (Phantom Thread, 2017), estrelado por Daniel Day-Lewis no papel de um arretado costureiro inglês.
O diretor Paul Thomas Anderson teve a primeira luz sobre a ideia do filme ao ler a biografia de Balenciaga.
E Lewis não só bebeu na mesma fonte como, notório investigador profundo de seus papéis (aliás, declarou que este seria o último), também se aventurou a costurar por conta própria e do zero um vestido icônico da marca, para desvendar seus segredos, suas sutilezas. Sobre essa experiência, disse, em entrevista à W Magazine:
“O vestido Balenciaga era muito simples… ou pelo menos parecia, até que tive que descobrir como fazer e percebi que era incrivelmente complicado. Meu Deus. Não há nada mais bonito nas artes do que algo que parece simples. E, se você tentar fazer qualquer coisa em sua vida, você sabe como é impossível alcançar essa simplicidade sem esforço.”
Balenciaga, sinônimo de inovação. Christian Dior o adorava. Sobre ele, Coco Chanel dizia que era o único “couturier” de verdade, porque tinha um domínio técnico absurdo e sabia fazer de TUDO.
Era também um alquimista de tecidos, combinando pesados bordados e veludos com envoltórios diáfanos como a renda e a gaza.
Adepto da técnica moulage, costurava diretamente nos corpos das modelos, onde desenhava curvas, fendas, caimentos inovadores. Inspirava-se na tradição japonesa, no flamenco e na vestimenta torera e em artistas espanhóis como Goya, Velázquez, El Greco, os hábitos profusos das figuras religiosas de Zurbarán.
E era um desbravador. Reinventou a silhueta feminina com o vestido túnica e o vestido-saco nos anos 1950, liberando o corpo da mulher para movimento e fluidez.
Aliás, se você já usou um baby doll na sua vida, diga gracias al Balenciaga!
Trasladada a Paris em 1937, por conta da eclosão da Guerra Civil Espanhola, a marca caiu no ostracismo no fim dos anos 1960, com a revolução sociocultural do momento.
Nos anos 2000, comprada pelo grupo Gucci, lentamente ressuscitou para o estrelato, repaginada como uma marca mais moderna, com um pezinho no streetstyle e nas campanhas polêmicas, conquistando endorsers pop como a cantora Dua Lipa, Kim Kardashian e Kanye West.
A marca sofreu um duro golpe midiático em 2022, quando lançou duas campanhas fotográficas cringe: uma, que mostrava sobre uma mesa uma bolsa feita em colaboração com a Adidas, e onde aparecia, de fundo, uma papelada com um trecho de um documento legal relacionado a leis federais norte-americanas contra pornografia infantil (!); e outra com crianças posando com bolsas em forma de ursinhos de pelúcia vestidos ao estilo BDSM/bondage (!!!).
Meo deos do sséu. Roupinha esgarçada é fichiña.
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Voltando à tendência destroyer de luxo, Balenciaga está longe de ser a única marca a se aventurar em ousadias semelhantes.
No ano passado, a casa italiana Bottega Veneta, queridinha de celebrities como (de novo) as irmãs Kardashian, Rihanna e Jackie Kennedy, caiu na boca do lobo do Anhangabaú (pobre Anhangabaú) com uma bolsa idêntica a um saco de papel de supermercado por módicos R$ 9 mil (a bolsinha pequena, suficiente pra meter uns dois tomate) a R$ 12 mil (acomoda um maço de espinafre + umas cebolas).
Em tempo: é couro, não papel. O que nem sei se é melhor ou mais desastroso ainda. Isso sem falar na bolsa em forma de saco plástico de lixo que… enfim.
Vou guardar a sacola de papel do mercadão ao lado de casa. Vai que. E voltar a me concentrar em fazer planos para 2024. Que, de trapo em trapo, a vida vai passando, esvoaçando, deixando para trás o anteontem, os falecidos ricos, infames e pobres em igual medida, na única voracidade equânime que nos embala e leva a todos.
Felizes anos pa tutti!