Revoltados com a exploração a que são submetidos, animais derrubam seus algozes e colocam no lugar um grupo de representantes com nobres causas que, uma vez no poder, acabam idênticos aos antigos tiranos.
O enredo de “A Revolução dos Bichos”, clássico de George Orwell publicado em 1945 e traduzido mais recentemente no Brasil como “A Fazenda dos Animais”, é a inspiração para “Bestias”, HQ do jornalista hispano-britânico John Carlin e do ilustrador Oriol Malet lançada no início do mês pela editora espanhola Astiberri.
No novo livro, saem as referências à antiga União Soviética stalinista e entram as de outra ditadura —a de Daniel Ortega, 79, e de Rosario Murillo, 73, casal que comanda com mão de ferro a Nicarágua, país centro-americano que já foi lar de Carlin.
Apesar da pertinência do tema para os nicaraguenses, o jornalista acha improvável que o livro chegue ao país, ainda que a editora que o lançou tenha distribuidoras parceiras que atuam na região. “Não vai aparecer nas livrarias pelos motivos que já sabemos. Pode ser que circule de maneira clandestina, apenas”, afirma.
Diferentemente da sátira orwelliana, em “Bestias” os revolucionários são cabras antropomorfas que lutam contra um porco ditador —em “A Fazenda dos Animais”, os porcos são os responsáveis por liderar uma revolta contra a opressão humana.
Jornalista há mais de 40 anos, Carlin ganhou notoriedade cobrindo a África do Sul pós-apartheid, no final dos anos 1990. É fruto de seu trabalho nessa época uma de suas obras mais conhecidas —o livro Conquistando o Inimigo (Sextante, 2009), inspiração para o filme Invictus, que narra como Nelson Mandela usou o rúgbi para unir seu país.
A trajetória do sul-africano, presidente por apenas um mandato após ser libertado como herói de três décadas de prisão, é a antítese da história de seu último livro, diz o jornalista. “Ele teve sabedoria para entender que o poder pode te corromper”, diz Carlin.
Líder do atual regime nicaraguense desde 2007, Ortega participou de uma revolução que, em 1979, derrubou uma ditadura familiar de mais de 30 anos. A Revolução Sandinista foi um sopro de esperança para a esquerda internacional, conta Carlin, que morou na Nicarágua nos anos que sucederam a queda de Anastasio Somoza Debayle (1925-1980), o último tirano da dinastia.
“De repente parecia que estávamos diante de um socialismo que pregava justiça social e igualdade, mas com liberdades individuais”, afirma ele, lembrando da peregrinação de jovens da Europa e da América do Norte ao país centro-americano para ajudar em programas sociais como os de alfabetização, por exemplo.
“Havia um jornal, o La Prensa, que era muito crítico ao sandinismo e continuava publicando todos os dias. Quem vivia na Nicarágua naquela época não tinha medo de dizer o que pensava, o que é impossível hoje.”
Todos os amigos daquela época estão exilados, conta o jornalista. Desde 2018, quando milhares de jovens tomaram as ruas gritando que Ortega e Somoza eram “la misma cosa”, o regime ganhou contornos distópicos.
Ao menos 355 pessoas foram mortas nas manifestações, segundo a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), repressão que praticamente eliminou protestos no país. Nos anos seguintes, dezenas de opositores foram presos —grande parte deles sandinistas e ex-companheiros de luta de Ortega.
Entre os presos políticos já estiveram nomes como o de Dora María Tellez, ex-guerrilheira que atuou na tomada do Palácio Nacional, em 1978, e Hugo Torres, que em 1974 fez parte em uma operação que libertou Ortega. O segundo morreu na prisão em 2022, antes que Ortega e Murillo passassem a tirar a nacionalidade e confiscar bens de críticos do regime.
Grande parte desses episódios estão retratados no livro —o que, ao lado da paisagem com vulcões e da ocorrência de terremotos, torna o cenário familiar ao leitor que acompanha minimamente a política nicaraguense.
Um dos trechos mais inconfundíveis é o que menciona os abusos sexuais do ditador fictício contra sua enteada. Em 1998, quando Ortega se recuperava de duas derrotas seguidas nas urnas antes de voltar ao poder, Zoilamérica Murillo, então com 31 anos, veio a público afirmar que fora violentada pelo atual ditador durante mais de uma década.
“Desde os 11 anos fui agredida sexualmente e de maneira reiterada por anos por quem, apesar de sua condição de pai de família, abusou de seu poder”, afirmou ela em uma carta divulgada na ocasião —acusação que Ortega nega até hoje.
Para Carlin, apoiar ou não a filha foi a decisão da vida de Murillo, vice-presidente desde 2017. “Ela escolhe seu marido e afirma que sua filha é uma mentirosa. Desde então, acumula um enorme poder na Nicarágua, porque agora tem seu marido, que é o líder oficial, no bolso”, afirma ele. “Ela se desumaniza quando comete uma traição tão vil contra a própria filha.”
O livro foi concluído antes de Ortega apresentar uma reforma da Constituição para expandir seu poder, no fim de novembro. Uma das principais mudanças consistiu em alterar o nome do cargo de vice-presidente para copresidente, fazendo Murillo ter os mesmo poderes que o marido.
“Ninguém duvida agora do que muita gente suspeitava —que Rosario Murillo é quem manda na Nicarágua”, afirma Carlin.