Os cientistas demonstraram que o aumento global das temperaturas em mais de 1,5°C é uma ameaça importante para as pequenas nações insulares. E, entre fevereiro de 2023 e janeiro de 2024, pela primeira vez, o aumento da temperatura global ultrapassou o nível de 1,5 °C por um ano inteiro.
Como os países desenvolvidos ainda não começaram a reduzir suas emissões com velocidade suficiente para ajustar a trajetória de aumento das temperaturas, o irmão gêmeo digital das ilhas será uma forma para que os futuros emigrantes de Tuvalu preservem sua conexão entre si e com suas terras e o patrimônio perdido.
Sem dúvida, esta medida representa o abandono do mantra “não estamos afundando, estamos lutando”, que foi a base da retórica das nações da Oceania até aqui.
A possibilidade de relocação em massa de Tuvalu para a Austrália (a cerca de 5 mil km de distância) passou recentemente a ser realidade, após o tratado assinado entre as duas nações em 2023.
O acordo permite a migração anual de 280 cidadãos tuvaluanos para a Austrália. Eles receberão novos vistos que irão permitir que eles morem, trabalhem e estudem no país. Haverá também formas de requerer a cidadania australiana.
Mas nem todos concordam que já tenha chegado a hora de desistir das ilhas.
“O conceito da criação de uma nação digital tuvaluana no metaverso indica que Tuvalu irá desaparecer com o aumento do nível do mar e que devemos fazer uma cópia digital do país”, declarou o ex-primeiro-ministro de Tuvalu e agora líder da oposição Enele Sopoaga, em pronunciamento à imprensa em relação às propostas.
Para ele, “não existem fundamentos para esta proposição nas leis internacionais e não há absolutamente nenhuma razão para acreditar que Tuvalu irá desaparecer, mesmo com o aumento do nível do oceano”.
Em setembro, discursando no plenário da Assembleia Geral da ONU sobre as ameaças existenciais causadas pelo aumento do nível do mar, a ativista climática tuvaluana Grace Malie declarou aos delegados que seu país e outros Estados insulares “não serão engolidos pelo mar em silêncio”. Eles “continuarão a lutar” pela sua terra, cultura e futuro.
“Não são apenas as nossas casas que estão em risco”, disse ela, sobre os tuvaluanos. “É a nossa dignidade, nossa cultura, nosso patrimônio.”
“Não é algo que possamos colocar nas malas e levar embora. Fizemos o mínimo para causar a crise, mas estamos pagando o preço mais alto.”
Digitalizar sem desistir do físico
Mesmo com alguns tuvaluanos considerando a possibilidade de emigrar para a Austrália, Tuvalu dobrou a aposta, pressionando os australianos a reduzir a extração e exportação de combustíveis fósseis do país.
Já outros indicam que a construção do irmão gêmeo digital de Tuvalu não significa desistir dos esforços de salvar as suas ilhas. Eles defendem que o trabalho de proteção física do arquipélago pode caminhar lado a lado com a preservação da sua memória no metaverso.
“O programa Nação Digital não significa que aceitamos a perda do país como entidade física”, afirma o pesquisador tuvaluano Taukiei Kitara, da Universidade Griffith, na Austrália. Ele é um dos autores de um estudo recente sobre a iniciativa Nação Digital.
Kitara destaca que este é apenas mais um projeto entre muitos, na luta de Tuvalu contra as mudanças climáticas. E tem a vantagem de ser conduzido pelos próprios tuvaluanos.
O governo local também está gastando milhões de dólares, por exemplo, na recuperação de terras, com um projeto de adaptação do litoral do país.
Nos últimos dois anos, faixas de terra livres de enchentes foram acrescentadas às ilhas de Funafuti e Fogafale. Elas oferecem espaço para moradias, infraestrutura e outros serviços essenciais.
Já nas ilhas externas de Nanumaga e Nanumea, novas barreiras de proteção evitam que a maré atinja as casas, escolas, hospitais, áreas agrícolas e o patrimônio cultural da região.
“O planejamento para diversos cenários – o melhor caso, o pior e os intermediários – é algo sensível, quando o assunto é a gestão de riscos”, explica Kitara, “e esta é a tática adotada pelo atual governo de Tuvalu, bem como pelos diversos governos anteriores.”
Deixando de lado se o governo deve ou não se preparar para um futuro sem as ilhas, algumas pessoas sugerem que o plano Nação Digital é simplesmente impraticável, em um país que permanece comparativamente desconectado do mundo digital.
Eles defendem que o projeto é pouco mais que um exercício de relações públicas, projetado para chamar a atenção internacional e convencer as nações mais ricas a reduzir suas emissões – o que é fundamental para a própria sobrevivência das ilhas físicas.
Mas os esforços desenvolvidos pelo governo tuvaluano para mapear as ilhas e ampliar a conectividade do país indicam que este projeto é mais do que uma simples forma de pressão diplomática.
No primeiro ano após o anúncio na COP27, Tuvalu completou a varredura 3D de todas as suas 124 ilhas. O país usou a tecnologia de detecção e telemetria por luz (Lidar, na sigla em inglês), uma técnica de varredura aérea a laser.
O país, agora, está aumentando sua conectividade digital, com a instalação de um cabo submarino de telecomunicações. Ele irá ajudar a fornecer a largura de banda necessária para colocar o projeto em ação.
A organização não governamental global Place apoia o mapeamento de livre acesso e outros dados geográficos. E, entre março e abril de 2024, ela começou a mapear as características físicas da capital de Tuvalu, Funafuti.
A ONG usa drones e câmeras de 360 graus para registrar imagens aéreas e das ruas locais. Estes dados brutos podem ser empregados para criar imagens no estilo do Google Earth ou do Street View, mas com superalta resolução.
Esta precisão é necessária para poder capturar os detalhes das ilhas mais estreitas, que têm apenas dezenas de metros de largura em alguns pontos. A precisão das imagens de satélites não é suficiente para atingir este nível de detalhamento.
“Nós cobrimos toda a ilha de carro, depois substituímos os veículos por bicicletas para as ciclovias e, depois, por câmeras minúsculas para todos os caminhos a pé”, explica Frank Pichel, supervisor de operações de campo da Place. “Acho que cobrimos cerca de 80 ou 90 km, realmente o máximo que conseguimos.”
Longe de ser um exercício de relações públicas, Pichel destaca que a criação de um “irmão gêmeo digital” apresenta diversas aplicações no mundo real. Ela pode ajudar a nação a se adaptar e combater de forma prática as mudanças climáticas.
Registrando o tamanho e o ângulo dos telhados, por exemplo, o projeto pode modelar a capacidade de instalação de painéis solares no futuro. E a varredura dos tanques de armazenamento de água pode ajudar a estimar a disponibilidade de água potável na ilha.
Pichel ressalta que esta técnica não é exclusiva de Tuvalu, mas a dimensão cultural e o senso de urgência criado pelas mudanças climáticas aumentam o significado da tarefa.
“Se você observar a economia dos países desenvolvidos, eles estão procurando seguir este formato, mesmo sem chamá-lo de gêmeo digital”, explica ele. E Pichel oferece um exemplo dessas iniciativas.
“Londres quer um ‘gêmeo digital’ do seu cabeamento subterrâneo, para ter certeza de que eles não irão atingir fios ou antigas linhas de esgoto. Ou seja, é algo que já existe na gestão de dados espaciais há muito tempo e, talvez, cresça um pouco mais com um novo rótulo.”
A próxima etapa do trabalho em Tuvalu seria mapear o restante das ilhas, para depois preencher as lacunas restantes, segundo Pichel.
As ilhas são locais remotos – ela ficam em uma cadeia com cerca de 676 km de extensão. Por isso, o mapeamento será um trabalho difícil e demorado.
Mas a equipe da Place espera voltar para obter mais dados a cada dois anos, já que as ilhas estão em fluxo constante, devido aos impactos das mudanças climáticas.
À medida que aumenta o nível do mar, a construção da sua réplica digital pode ajudar Tuvalu a preservar mais do que o imaginado.
O futuro físico das ilhas pode ser incerto, mas sua jornada digital está apenas começando.