É fácil entender o que motiva a estratégia econômica da candidata democrata à Presidência dos Estados Unidos, Kamala Harris.
Pesquisa após pesquisa demonstra que muitos americanos consideram o custo de vida a principal preocupação a alguns meses da eleição presidencial de novembro, e Kamala está em desvantagem, já que serviu como vice-presidente durante um período em que a inflação atingiu seu nível mais alto em quatro décadas.
Em vez de ignorar a realidade, a candidata tenta enfrentá-la. “Reduzir os custos para as famílias americanas” é o centro de sua agenda econômica, uma mensagem que provavelmente ela irá transmitir novamente nesta quinta (22), durante seu discurso na Convenção Nacional Democrata.
Mas o fato de sua estratégia ser compreensível não a torna sensata. Suas propostas correm o risco de aprofundar ainda mais os EUA no caminho de políticas econômicas autodestrutivas.
A culpa por essa trajetória certamente não é apenas de Kamala: muitos outros democratas e republicanos, começando por Donald Trump, já estavam seguindo nessa direção, embora com ênfases diferentes. No entanto, o plano de custo de vida dela pode marcar o início de uma nova fase na preocupante odisseia dos EUA. A candidata presidencial democrata mira em quatro categorias de custos: moradia, alimentos, saúde e impostos. Embora algumas de suas ideias sejam boas, muitas outras aumentariam os preços —o oposto do efeito pretendido.
O foco central de Kamala é a habitação. Neste quesito, suas políticas são encorajadoras, se levadas ao pé da letra. Ela pediu a construção de 3 milhões de novas casas nos próximos quatro anos e quer fornecer financiamento federal e reforma na emissão de licenças para que isso aconteça. Analistas estimam que os EUA sofrem com uma escassez de cerca de 4 a 7 milhões de casas, então o fornecimento adicional reduziria a lacuna. Mas será que Kamala realmente conseguirá construí-las?
Não importa que seu plano seja vago em detalhes: o financiamento para construção (ela mira em US$ 40 bilhões, ou R$ 222 bilhões) iria para os governos locais, que precisariam encontrar suas próprias soluções. Entretanto, outros elementos prejudicariam as suas ambiciosas metas de fornecimento.
Ela promete ir atrás de investidores de Wall Street, a quem critica por “comprar e valorizar casas em massa”. Na verdade, eles possuem menos de 1% das casas unifamiliares dos EUA e têm construído, em vez de apenas comprar, casas. Outra promessa —que recebeu aplausos calorosos quando foi revelado em um discurso na Carolina do Norte, em 16 de agosto— é dar a quem vai comprar uma casa pela primeira vez US$ 25 mil (R$ 138,8 mil) para as primeiras parcelas das hipotecas. Com a demanda por casas ainda superando a oferta, dinheiro extra desse tipo pode simplesmente resultar em preços mais altos.
O plano de Kamala sobre alimentos tem recebido as críticas mais duras. Ela quer aprovar a primeira proibição federal de aumento abusivo de preços em alimentos e mantimentos. Isso pode não ser o retorno ao controle de preços do presidente Richard Nixon na década de 1970, mas o embasamento intelectual para tal política é mal fundamentado.
Uma acusação comum da ala esquerda da política americana é que as empresas alimentaram a inflação durante a pandemia de Covid-19 ao se aproveitarem da escassez para aumentar os preços. Mas pesquisadores do Fed (Federal Reserve, o Banco Central americano) concluíram que não havia evidências de margens de lucro mais altas no nível agregado, o que teria sido uma condição prévia para as decisões de preços realmente causarem inflação. Além disso, preços mais altos para tudo, desde carros até presunto, serviram como um sinal crucial para as empresas produzirem mais e para os consumidores reduzirem a demanda.
As preocupações com a proposta antiaumento abusivo de Kamala devem ser amenizadas pelo fato de que é improvável que passe pelo Congresso. No entanto, a inviabilidade legislativa não desculpa o pensamento descuidado, e um foco na ganância corporativa indica que ela está pelo menos parcialmente cativa à ala progressista do Partido Democrata. Embora a promessa de Kamala de reprimir fusões e aquisições injustas na indústria alimentícia que levam a menos concorrência seja inobjetável, na realidade é pouco mais do que uma reafirmação da política antitruste existente nos EUA. A Comissão Federal de Comércio está atualmente envolvida em uma batalha legal para bloquear a maior fusão de supermercados na história americana.
Alguns dos elementos na área de saúde do plano de Kamala são, teoricamente, mais bem-vindos. Ela está certa em querer reduzir os custos médicos absurdamente altos dos EUA. Mas, como em qualquer controle de preços, limites para o custo da insulina (a US$ 35 por mês) e despesas próprias para medicamentos prescritos (a US$ 2.000 por ano) correm o risco de gerar resultados indesejados. Medidas semelhantes da administração Biden para limitar os custos de medicamentos para idosos agora estão ameaçando causar aumentos significativos em suas mensalidades de seguro.
Kamala também disse que trabalharia com os estados para cancelar dívidas médicas. Novamente, seu objetivo é louvável: é escandaloso que tantos americanos estejam sobrecarregados com dívidas médicas. No entanto, simplesmente cancelar a dívida apenas reiniciaria o ciclo para eles, com as dívidas se acumulando novamente sempre que precisassem de atendimento médico.
“Por que os custos com saúde são tão altos em primeiro lugar? Essa é uma pergunta legítima, mas não se presta a soluções rápidas”, diz Glenn Hubbard da Universidade Columbia. “Acho que ambos os partidos se degradaram a um ponto em que não querem fazer planejamento e pensamento de longo prazo, então eles fazem discursos rápidos, que é claro, falharão.”
A parte final da estratégia econômica de Kamala envolve cortes de impostos direcionados. Para famílias de baixa e média renda, ela aumentaria o crédito fiscal para crianças, incluindo US$ 6.000 (R$ 33,3 mil) durante o primeiro ano de vida de um bebê, em vez dos atuais US$ 2.000 (R$ 11,1 mil). E ela ampliaria o alcance do crédito fiscal para trabalhadores de baixa renda —um subsídio importante para os americanos mais pobres— para aqueles sem filhos.
Kamala pode argumentar fortemente a favor dessas mudanças. Quando o crédito fiscal para crianças foi ampliado durante a pandemia, por exemplo, isso levou a uma redução de quase 50% nas taxas de pobreza infantil. Como ela coloca, isso é um investimento no futuro dos EUA.
No entanto, essas mudanças não viriam isoladas. O déficit orçamentário americano está em 7% do PIB, um nível anteriormente associado a guerras ou recessões, enquanto a dívida nacional continua a subir. Nenhum dos candidatos ofereceu propostas sérias sobre como limpar o quadro fiscal do país, e ambos provavelmente piorariam a situação.
Kamala disse que seguirá os planos do presidente, Joe Biden, para aumentar as alíquotas de impostos corporativos para 28%, de 21%, mas aumentará os impostos sobre a renda apenas para aqueles que ganham mais de US$ 400 mil (R$ 2,2 milhões) por ano. Juntas, essas mudanças não gerariam receita suficiente para cobrir o custo total de sua agenda.
A falta de recursos adicionaria US$ 1,4 trilhão (R$ 7,8 trilhões) ao déficit dos EUA ao longo da próxima década, de acordo com a Piper Sandler, um banco de investimentos. Isso é muito, mesmo que seja menos do que o custo do plano de cortes de impostos de Trump, estimado em US$ 4,5 trilhões (25 trilhões) ao longo da próxima década.
De fato, uma das melhores coisas que se pode dizer sobre a agenda de Kamala é que provavelmente será menos prejudicial do que a de Trump. Ela é contra as tarifas que seu oponente prometeu. Muitas de suas propostas se resumem a ajustes nas políticas existentes, em vez de uma reformulação completa do sistema econômico americano, e têm pouca chance de sucesso legislativo. Por outro lado, o republicano pode usar o poder da presidência para impor tarifas gerais sobre todas as importações para os EUA, o pilar central de seu programa econômico —que Kamala criticou corretamente por ser um imposto sobre vendas disfarçado.
“Trump realmente parece pensar que estaríamos melhor com uma economia autárquica”, diz Greg Mankiw, da Universidade Harvard. “A preocupação para Kamala é que ela ajudou a implementar uma política industrial com muitas regras de compra americana, então parece que ela comprou em parte a ideia de antiglobalização.” “Não tão ruim quanto o outro candidato” seria um slogan de campanha ruim. No entanto, é um resumo preciso dos planos econômicos de Kamala.