O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, aprovou a revisão da estratégia de defesa nuclear do seu país considerando pela primeira vez o risco de um ataque coordenado da China, Rússia e Coreia do Norte com armas atômicas.
A informação é do jornal The New York Times. Segundo o diário disse nesta terça (20), Biden assinou o documento secreto em março. Uma versão editada da chamada Orientação de Emprego Nuclear será divulgada ao Congresso antes do fim do mandato do democrata, em janeiro.
O guia é atualizado de quatro em quatro anos, e é tão secreto que dele só há algumas cópias físicas, não eletrônicas. Recentemente, duas autoridades da área de segurança nacional indicaram que a revisão estava em curso.
Um deles, Vipin Narang, disse no começo do mês: “O presidente recentemente atualizou a orientação de emprego de armas nucleares para dar conta de múltiplos adversários armados nuclearmente”, disse, ressaltando a “variedade e o crescimento” do arsenal chinês.
Em junho, o diretor de não proliferação do Conselho de Segurança Nacional, Pranay Vaddi, afirmou que a revisão contempla “a necessidade de dissuadir a Rússia, a China e a Coreia do Norte simultaneamente”.
A preocupação não é nova, e emerge da realidade geopolítica desde que Donald Trump lançou a Guerra Fria 2.0 contra Pequim em 2017. O que começou como uma disputa comercial hoje redesenha o mapa do balanço de poder mundial, com blocos de países se formando em torno dos polos rivais na China e nos EUA.
O Pentágono já havia alertado anteriormente sobre a necessidade de prever uma guerra contra os maiores parceiros militares nessa contenda, Moscou e Pequim. Há alarmismo interessado também: o temor garante o maior dispêndio militar da história do pós-guerra, poupando por exemplo o criticado programa de novos mísseis intercontinentais americanos, os Sentinel.
Agora, um sócio minoritário no clube surge na figura do ditador Kim Jong-un, que assinou há dois meses um pacto de defesa mútua com Vladimir Putin.
O risco presumido maior é o de combates teoricamente limitados: nenhum país tem capacidade de se defender contra um ataque maciço com mísseis. Como mostrou neste ano o best-seller Guerra Nuclear: um cenário, da jornalista americana Annie Jacobsen, os EUA só têm 44 mísseis de interceptação, e eles são pouco confiáveis.
Os russos são, historicamente, a maior preocupação do Ocidente no campo nuclear. Cortesia da corrida armamentista da Guerra Fria encerrada em 1991, Rússia e EUA concentram cerca de 90% das 12.121 ogivas nucleares do planeta. Desde Trump, o arcabouço de tratados de controle de armas foi desmontado.
Com a Guerra da Ucrânia, o risco foi exacerbado pelas ameaças diretas de Putin de empregar as armas a quem interviesse diretamente em favor de Kiev. Isso manteve a Otan, aliança liderada pelos EUA, fora do conflito e modula até hoje a ajuda militar enviada para Volodimir Zelenski, para desespero do presidente ucraniano.
Mas a postura passiva tem mudado, e os EUA responderam às ameaças russas com sinalizações pouco sutis, como o envio de bombardeiros com capacidade nuclear B-52 para meros 110 km da fronteira ucraniana, na Romênia. Washington também diz que vai posicionar mísseis convencionais na Alemanha, em 2026, algo que não ocorria desde 1987.
A Otan mesmo já declarou que é preciso aumentar o número de armas nucleares táticas, aquelas que tem tese se limitam ao campo de batalha, na Europa. Em resposta, Putin, que já tinha posicionado essas armas na vizinha Belarus, não só determinou uma série de exercícios militares com esse tipo de bomba como anunciou a revisão de sua própria doutrina de emprego delas.
Também chama a atenção no Ocidente a aliança entre chineses e russos que, se não é um pacto, aprofundou-se muito no campo militar. Patrulhas com bombardeiros de ataque nuclear e manobras conjuntas ocorrem frequentemente.
A China sempre disse que mantinha um arsenal mínimo para fins dissuasórios, mas nos últimos anos tem acelerado a produção de ogivas e diversificou seu arsenal de mísseis para empregá-las.
Segundo a referencial Federação dos Cientistas Americanos, que monitora arsenais mundo afora, os chineses tinham 240 bombas quando Xi Jinping chegou ao poder, em 2012. Hoje, têm 500 e o Pentágono prevê que cheguem a 1.500 em 2035, igualando o patamar de armas operacionais de russos e americanos.
Os rivais da antiga Guerra Fria têm muito mais ogivas, mas pelo hoje congelado tratado Novo Start só operam um máximo de 1.600 prontas para uso, a serem empregadas por mísseis lançados por terra, submarinos ou bombardeiros.
A Coreia do Norte chega à equação, segundo a entidade americana, com 50 bombas, um arsenal que vem se expandindo. O ambiente de segurança na península coreana também está degradado, e Biden deu pela primeira vez assento à aliada Seul no comitê que planeja o uso de armas atômicas no caso de uma guerra por lá.
Ainda há no pacote o Irã, que tem uma relação próxima com Moscou e, a exemplo de Kim, forneceu armamento mais simples para Putin empregar na Ucrânia. Os aiatolás têm um desenvolvido programa nuclear, ora sob ameaça de um ataque pela também potência atômica Israel (90 bombas), e a ONU diz que o país está a um passo de ter sua bomba.
O novo equilíbrio do terror é mais pulverizado, em comparação com a da Guerra Fria original. França (290 bombas) e Reino Unido (225 ogivas) completam o lado ocidental da equação, que vê rivais regionais na Índia (172 armas) e Paquistão (170).