A deriva ditatorial na Venezuela, diante de uma persistente mobilização cidadã exigindo democracia, testa os limites da interferência e da não-interferência externa e a capacidade do entorno regional de influenciar em um conflito com implicações geopolíticas que ameaça a paz e a estabilidade na região.
Na Venezuela, ocorreu uma fraude eleitoral escandalosa, que parece ter sido promovida pelo regime venezuelano para justificar um endurecimento repressivo e uma onda expansiva a escala regional e hemisférica para proteger sua continuidade no poder. O livro de José Natanson, “Venezuela. Ensayo sobre la descomposición” (Debate, 2024), ajuda a entender o conteúdo e os antecedentes dessa crise sem saída à vista.
A polarização ideológica também tenta narrativas que agitam o fogo: alguns falam da luta contra o comunismo e o socialismo, outros da luta contra o fascismo e o imperialismo. A recriação de uma nova Guerra Fria nos leva de volta no tempo: voltamos o calendário 60 anos e temos o ditador Maduro como uma espécie de reencarnação de Fidel Castro, a China e a Rússia operando direta ou indiretamente no subcontinente americano, e os EUA observando com expectativa.
Nessa narrativa, como ocorreu naquela época, a invocação da democracia é mantida em cativeiro por aqueles que estão jogando outro tipo de jogo: o jogo da revolução e da contrarrevolução, da anarquia ou da ordem impostos pela força.
Há vinte anos, o livro de Thomas Barnett, “O novo mapa do Pentágono. Paz e Guerra no Século XXI” (2004) mostrava um mundo dividido em duas grandes áreas: o “núcleo” e a “zona não integrada”. O “núcleo” desfrutaria dos benefícios do sistema: comércio, comunicações, transporte e transações monetárias tranquilas. A zona “não integrada” está dissociada do sistema e vive no caos e na instabilidade.
Essa zona de instabilidade incluiria os países do norte da América do Sul e a bacia do Caribe, com um epicentro: a Venezuela. Um mapa que recria os dos pais da geopolítica ocidental do século 20 — um “coração central” ou área pivô e anéis periféricos, terrestres e marítimos, onde ocorrem as disputas entre as potências pela supremacia — e que, como um espelho simétrico, parecem ter adotado Pequim e Moscou para situar a América Latina na nova geopolítica global.
O Comitê de Política Externa do Congresso dos Estados Unidos acaba de apresentar seu relatório sobre a Estratégia Nacional de Defesa do país. Nossa região é uma das menos mencionadas e é expressamente identificada como um “teatro de competição entre grandes potências”. Nesse caso, o documento de 132 páginas do Congresso dos EUA deixa explícito que a região é um espaço de disputa e destaca a necessidade de preparação urgente para vários cenários de confronto armado.
Há quarenta anos, as transições do autoritarismo para a democracia na América Latina foram condicionadas pelos últimos resquícios da Guerra Fria: o conflito Leste-Oeste — naquela época concentrado na América Central — precisava ser impedido de estrangular os processos de saída das ditaduras e de democratização.
O processo de integração, portanto, também tinha um objetivo estratégico: que as democracias de cada país pudessem criar raízes em um entorno regional livre de conflitos armados e enfrentando com êxito as ameaças de regressão autoritária. Agora, trata-se de evitar que o conflito geopolítico global nos arraste para o caminho oposto, sem uma rede de segurança e em um cenário regional fragmentado. E a Venezuela pode representar, nesse sentido, um verdadeiro ponto de inflexão.
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