O vexaminoso vaivém da posição brasileira acerca da aguda crise na Venezuela é um atestado de incapacidade que erode ao ponto de implosão a pretensão de Lula (PT) de tornar-se um líder global influente em seu terceiro mandato.
As condições para tal estavam dadas. Seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), conseguiu alienar o Brasil de todos os fóruns relevantes, rebaixando o país a uma condição de pária que famosamente orgulhava seu mais folclórico chanceler, Ernesto “Deus vult” Araújo.
Se Lula e seu ministro das Relações Exteriores nos dois primeiros mandatos do petista, Celso Amorim, eram conhecidos por sua megalomania financiada pelo boom das commodities, o presidente mantinha uma certa aura externa, particularmente na Europa e entre os países que são colocados juntos no escaninho do dito Sul Global, uma ilusão argumentativa.
Derrotado nas urnas, Bolsonaro viu nos Estados Unidos de Joe Biden um formidável adversário às suas pretensões golpistas na transição de governo. Mais de um general da cúpula militar da época cita o peso do apoio americano ao processo eleitoral e à alternância de poder no Brasil.
Com a agenda ambiental, de transição energética, de segurança alimentar e de combate à miséria à mão, Lula poderia ter encaixado um discurso de fácil assimilação e tornar-se, de fato, global.
Preferiu outro caminho e buscou um lugar à mesa da Guerra da Ucrânia. Igualou agressor a agredido, sendo jogado para o canto do tabuleiro. Recentemente, foi recolocado no jogo a tiracolo da China, que lidera o esforço por negociações e trouxe o Brasil como sócio minoritário em uma declaração conjunta.
Pequim quer ser vista não só como aliada da Rússia, como o é, mas hoje é o único país que pode chegar a algum lugar quando Valdimir Putin decidir que é hora de parar.
Assim, mesmo que de carona, ainda há espaço para Lula recuperar algo de sua imagem no episódio. Mas dificilmente será descolada da percepção acerca de que lado está na Guerra Fria 2.0, polarizada por Washington e Pequim.
Desde a consolidação da ideia de uma política externa pragmática e não alinhada, sob o Itamaraty de Azeredo da Silveira (1917-1990), com a exceção dos anos Bolsonaro o Brasil sempre busca a coroa da independência num mundo em constante divisões.
Para desgosto da claque lulista, ela hoje se assenta sobre a cabeça da Índia, que tem uma combinação de fatores inalcançável para o Brasil: pujança econômica, bônus demográfico, visão geopolítica e poderio militar para defendê-la.
Adensando o enredo, Lula regrediu a um antiamericanismo retórico mais explícito, acusando o Tio Sam pela Lava Jato e, por consequência, pelos 500 dias que passou na cadeia —horrorizando a diplomacia dos EUA no processo.
Seus limites ficaram óbvios quando a China resolveu ressuscitar o Brics, outra relíquia da década de 2000 que busca reinventar-se. Contra a vontade brasileira, o clube foi ampliado com elementos exógenos, como a teocracia iraniana, e terá um belo teste de estresse a ser recebido na Rússia de Putin em outubro.
Sobre a guerra em Gaza, sem delongas esqueceu que o Hamas é um grupo terrorista e hoje nem embaixador tem em Tel Aviv —embora aí a malcriação do governo de Binyamin Netanyahu tenha grande parcela de culpa.
Por fim, a Venezuela. A ditadura de Nicolás Maduro é incontornável até pela geografia. Cortar laços ou namorar uma intervenção militar, como fez Bolsonaro sob os auspícios de Donald Trump, foi inócuo e perigoso.
Quando o venezuelano decidiu em uma canetada anexar 2/3 da Guiana, Brasília operou bem, reduzindo as tensões com o apoio interessado dos EUA, cujas petroleiras operam no país caribenho. De forma análoga, Biden delegou a brasileiros e colombianos a tentativa de lidar com Maduro.
Lula optou por mimar Maduro. O processo eleitoral venezuelano era uma fraude desde que o petista deixou-se engambelar, restando saber se de forma consciente ou não, pela quimera do Acordo de Barbados.
A conta veio. Se estava correto em exigir as fantasmagóricas atas eleitorais, como o Itamaraty fez de saída, o Brasil afundou-se na sucessão de frases e atitudes de Lula e Amorim. A mais recente fórmula, sugerindo um novo pleito, foi espezinhada e consolida a falta de rumo brasileiro.
O desfecho da confusão é incerto e o Brasil ainda pode tirar algum coelho da cartola com ajuda da Colômbia, mas o dano a Lula está dado. Antagonizado por antigos parceiros na América do Sul, isolado no Mercosul, o presidente não tem conseguido liderar nem onde isso seria óbvio.
Pior: enquanto a hidra Itamaraty-Amorim se enrola sob os auspícios do chefe, o Brasil é visto como linha auxiliar do mesmo lado da Guerra Fria 2.0 em que Maduro, um ditador extravagante útil a Moscou e a Pequim, se debate para ser visto como membro destacado.