Usha Chilukuri Vance parecia um peixe fora d’água ao subir no palco da convenção republicana para introduzir seu marido, J.D., que acabara de ser anunciado candidato a vice-presidente na chapa de Donald Trump.
Diante de um mar de cartazes “deportação em massa já”, a filha de imigrantes indianos falou sobre como o marido se adaptou à sua dieta vegetariana e até aprendeu a cozinhar para a sogra. Em meio a maquiagens carregadas, saltos altíssimos e longos cabelos loiros, Usha, 38, deixava à mostra seus fios brancos e parecia não estar usando nem batom.
Ela não mencionou o nome de Trump nenhuma vez.
A confusão foi geral, à esquerda e à direita: uma liberal ou uma conservadora? Uma esposa devota ao marido ou uma mulher oportunista e ambiciosa? Um exemplo do sonho americano ou um instrumento para dar um verniz de diversidade à campanha de Trump?
“Usha gosta de cozinhar, ler e defender seu cachorro Pippin de acusações quase universais de deficiência mental”, limita-se a dizer a pequena autobiografia no site de casamento no ar em 2014, mas ainda acessível pelo Internet Archive.
A celebração ocorreu no mesmo ano e incluiu uma pequena cerimônia hindu. A foto do casal em trajes típicos começou a circular na internet nas últimas semanas, servindo de munição para supremacistas brancos insatisfeitos com a escolha feita por Trump para seu vice.
“A mulher de J.D. Vance ‘Usha’ não foi criada cristã e não é cristã. Que tipo de família é essa?”, questionou, por exemplo, o supremacista branco e antissemita Nick Fuentes, recebido por Trump em seu resort em Mar-a-Lago em 2022.
Em resposta aos ataques, Vance disse que Usha é uma boa mãe e uma advogada brilhante da qual ele tem orgulho. “Obviamente, ela não é uma pessoa branca, e nós fomos acusados, atacados por alguns supremacistas brancos sobre isso. Mas eu apenas amo Usha”, afirmou em uma entrevista.
O vídeo foi compartilhado por democratas, que criticaram a resposta pouco vigorosa ao racismo sofrido por sua mulher.
Esse não foi o único momento em que o vice de Trump teve problemas para lidar com a origem racial de Usha na campanha. Ao defender os questionamentos feitos por Trump se Kamala Harris “é indiana ou negra”, democratas apontaram a falta de sensibilidade de Vance com a origem birracial dos próprios filhos –ele e Usha têm três, Ewan, Vivek e Mirabel, todos com menos de dez anos de idade.
Na outra ponta do debate racial, Mythili Sampathkumar, uma das diretoras da associação que representa jornalistas nos EUA de origem do sul da Ásia, escreveu um longo artigo em que aponta Usha como exemplo do que chama de mito da minoria modelo, em contraste com Kamala, também filha de mãe indiana.
“O mito da minoria modelo posiciona os asiático-americanos como a ‘boa’ minoria, explorando nossos sucessos para minimizar o racismo e outras disparidades baseadas em raça e criando um estereótipo prejudicial que não condiz com muitas de nossas experiências vividas”, escreve ela, afirmando que a potencial segunda-dama ilustra essa visão prejudicial ao grupo étnico nos EUA.
Usha é filha de dois acadêmicos que migraram do sul da Índia para os EUA —”legalmente”, enfatizou ela em uma entrevista recente. Sua mãe, Lakshmi Chilukuri, dá aulas de biologia molecular na Universidade da Califórnia em San Diego e foi uma das signatárias de um abaixo-assinado acadêmico pedindo para que Trump não retirasse os EUA do Acordo de Paris. Seu pai, Krish, é professor do departamento de engenharia aeroespacial na Universidade Estadual de San Diego.
Ela e a irmã, Shreya, cresceram em um bairro de classe média alta da cidade californiana. Em 2003, mudou-se para o outro lado do país para estudar história na prestigiosa Yale. Em paralelo à faculdade, deu aulas como professora voluntária em escolas públicas, editou uma publicação sobre políticas para educação e participou do “Ballet Folklorico Mexicano”.
Em 2006, o tabloide estudantil Rumpus a listou entre “os 50 mais bonitos” da universidade. O texto a descrevia como alguém ligeiramente mais à esquerda politicamente, mas com preferência por homens “altos, bonitos e conservadores”.
Após se formar, Usha recebeu uma concorrida bolsa para dar aulas na China. De lá, foi para o Reino Unido, onde fez um mestrado na Universidade de Cambridge com uma bolsa Gates, criada pelo fundador da Microsoft.
Em 2010, voltou a Yale para estudar direito e participou de clínicas jurídicas sobre Suprema Corte e Liberdade de Imprensa e de um grupo de auxílio a refugiados iraquianos. Foi logo no primeiro semestre que ela conheceu J.D. Vance, e os dois começaram a namorar pouco depois.
A carreira profissional de Usha é tão estrelada quanto a acadêmica. Do mesmo modo, permite dizer pouco sobre suas visões políticas.
Ela foi assistente do juiz conservador Brett Kavanaugh, hoje na Suprema Corte após ser nomeado por Trump, quando ele comandava um tribunal de apelação no circuito do Distrito de Colúmbia. Em 2017, passou a assessorar o presidente da Suprema Corte, o também conservador John Roberts.
Mas, no setor privado, construiu sua carreira no Munger, Tolles & Olson. Com sede em San Francisco, o escritório de advocacia tem fama de ser um ambiente progressista e descolado. O site da organização destaca, por exemplo, várias iniciativas para promover a diversidade, como atuações pro-bono em defesa de pessoas trans.
Usha trabalhava com casos complexos envolvendo direito civil e recursos em uma variedade de setores, como educação superior, entretenimento e tecnologia. Deixou o trabalho no dia em que Vance foi anunciado como vice na chapa de Trump.
Em um editorial, o diário The Wall Street Journal sugere que Vance use mais a companheira na campanha para recuperar sua imagem após o desastre de seus comentários sobre mulheres com gatos e sem filhos. “Ela pode ajudar a persuadir os eleitores indecisos de que o sr. Vance respeita as mulheres mais do que seus comentários fizeram parecer”, opina o jornal.
A campanha parece ter ouvido o conselho, e na semana passada o canal conservador Fox News veiculou uma entrevista feita com Usha, sua primeira solo. Questionada sobre a compatibilidade política com o marido, respondeu que os dois são “duas pessoas diferentes, com passados e interesses diferentes, e que chegam a conclusões diferentes o tempo todo”.
“Isso é a parte divertida de ser casada. Mas nunca duvidei de J.D. Até quando discordo disso ou daquilo, sei quais são as intenções, o que ele quer fazer. Eu realmente confio nele”, declarou.
Quem conviveu com Usha ao longo de todos esses anos a descreve como uma pessoa centrada, inteligente e praticamente apolítica. “Ela não era o tipo de pessoa que tentava provocar controvérsia. Eu acho que ela tem um cérebro técnico”, disse Doug Lieb, que foi seu colega na faculdade de direito, ao Washington Post.
Nos EUA, eleitores podem se declarar vinculados a um partido quando se registram para votar. No caso de Usha, ela se declarou democrata em 2004, quando estava no início da faculdade, e em 2010, quando voltou a Yale. Em 2014, mudou sua afiliação para independente e, em 2022, quando Vance disputou o Senado por Ohio, para republicana.
Um dos raros momentos em que teria se manifestado politicamente foi após o 6 de Janeiro (dia do seu aniversário). Ainda de acordo com o jornal americano, Usha disse a amigos ter ficado indignada com o impulso dado por Trump para que seus apoiadores invadissem o Capitólio.
Questionada pela Fox sobre a mudança de posição em relação ao empresário, Usha disse que teve muitos anos “para meio que entender o que ele [Trump] quer fazer e o que J.D. quer fazer”. “Se eu não sentisse que a chapa Trump/Vance poderia fazer coisas boas pelo país, eu não estaria aqui apoiando ele, e J.D. não estaria fazendo isso.”