Rubens Ricupero foi flagrado dizendo a um jornalista: “O que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”. O incidente levou à demissão do diplomata, que não era apenas o ministro da Fazenda no início do Plano Real, em 1994. Era o ‘sacerdote do Real’, a autoridade encarregada de explicar à população e aos agentes do mercado o funcionamento do novo plano econômico, que traria estabilidade inédita no Brasil.
Seu livro “Memórias” mostra como é injusto que a biografia de Ricupero, 87, tenha se resumido a esse “episódio da parabólica” durante tantos anos.
O diplomata esteve presente em acontecimentos-chave da diplomacia brasileira —representou o Brasil em Washington no final do governo Collor, conduziu negociações comerciais do país em Genebra na Rodada Uruguai, esteve à frente da Rio 92 e liderou a Unctad, a agência da ONU para comércio e desenvolvimento, por quase dez anos.
Ainda assim, Ricupero não se furta de entrar em detalhes sobre o episódio que abalou sua reputação. Ele conversava com o jornalista Carlos Monforte antes de entrar ao vivo no Jornal da Globo, mas, sem que ninguém soubesse, o áudio estava sendo captado por antenas parabólicas em São Paulo.
Era 1º de setembro de 1994, e o real completava dois meses. Descontraído, porque conhecia bem Monforte, primo de sua mulher, ele derramou “uma enxurrada de tolices”. Mas o que lhe custou o emprego foi uma frase mal interpretada.
Ricupero comentou com Monforte que as projeções de inflação daquele setembro eram animadoras, indicando queda brusca nos preços. Monforte perguntou por que ele não divulgaria esses números preliminares positivos, e Ricupero disse que já havia acordado com os colegas só anunciar os índices do mês completo.
Do contrário, continuou Ricupero, “vão dizer: você proibiu da vez anterior que era ruim, agora que é bom… No fundo é isso mesmo. Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”.
Ou seja, ele dizia que não iria alardear os números positivos, senão significaria que não tinha escrúpulos.
“Entre as palavras e minha atitude, havia contraste flagrante. O poder das palavras é tão grande, porém, que todo mundo se fixou somente no que falei, não prestando atenção no que eu estava fazendo, que era recusar a divulgação da boa notícia. Sumiu por completo da versão da conversa o fato: eu agi com escrúpulo ao não permitir que se divulgasse o que era bom (e verdadeiro) para mim.”
O estrago estava feito. Sua credibilidade fora arranhada, e era insustentável sua permanência no cargo.
Ricupero não passa pano para si. Mostra um grau de sinceridade e autocrítica raríssimo entre pessoas públicas. “Fiz papel de tolo ao me deixar levar pela presunção e a vaidade. Fui, sim, culpado do pecado de hubris, a desmesura, o esquecimento das limitações pessoais, a pretensão de querer ser mais do que era.”
E era muito. Vinha de uma trajetória improvável: neto de imigrantes italianos, de infância pobre no Brás como tantos outros, estudou direito na Faculdade do Largo São Francisco, passou no concorrido curso para diplomatas do Instituto Rio Branco e chegou a embaixador e ministro de Estado.
Em plena Guerra Fria, foi testemunha ocular do momento em que o então presidente Jânio Quadros condecorou Che Guevara, em 1961, irritando ainda mais o governo americano em seu fervor anticomunista.
Che era ministro para Indústria e Comércio de Cuba. Ricupero conta ter se surpreendido com a “conversa amena, sempre reservada e discreta” do revolucionário argentino.
Outra lembrança saborosa remete ao fatídico 25 de agosto de 1961, data da renúncia de Jânio. Ricupero ficou sabendo por um colega e, inadvertidamente, passou o furo para alguns jornalistas aglomerados em frente à Câmara.
O diplomata também foi alvo da paranoia anticomunista durante a ditadura militar. Servindo no exterior, recebeu o questionário de uma comissão de investigações do Itamaraty e teve de esclarecer se tinha “ligações com movimentos esquerdistas”.
A vida de embaixador, está certo, também tinha seus momentos de glamour. Como descreve ele em uma abertura preciosa de capítulo: “Comecei o dia 2 de outubro de 1992 hospedando Shirley MacLaine e terminei jantando com Frank Sinatra. Entre um e outro, recusei ao menos cinco vezes ser ministro da Fazenda.”
A obra também acompanha as mudanças na orientação da diplomacia brasileira ao longo dos tempos, da política externa independente de Jango e Jânio, passando pelo alinhamento automático aos Estados Unidos sob Castello Branco até o “pragmatismo responsável” do governo de Ernesto Geisel e “a demolição radical” promovida por Jair Bolsonaro.
Ele resgata um pouco do monumental “A Diplomacia na Construção do Brasil. 1750-2016”, tour de force sobre a história das relações do Brasil com o mundo, que lançou em 2017.
Ricupero explica o trabalho dos diplomatas, muitas vezes mal compreendido. Reconhece que “a maioria dos diplomatas não terá oportunidade de pacificar um conflito, de negociar um tratado de paz, de ganhar o Prêmio Nobel por evitar massacres e calamidades bélicas, de morrer como herói para salvar um povo, como meu saudoso amigo de Genebra, Sérgio Vieira de Mello”.
Rechaça a pecha da diplomacia como um ofício frívolo e celebra o trabalho de formiguinha de seus colegas. “A verdade é que os tratados de comércio ou de limites, a celebração de alianças, só se tornam possíveis como resultado visível de infinitos, pequenos, obscuros, momentos de diplomacia silenciosa e perseverante, aparentemente decorativa.”
Ricupero foi protagonista de muitos desses momentos.