“Você conta histórias de mulheres?”, a pergunta de Raphaella Servius-Harmois no intervalo de uma reunião me surpreendeu. Eu não lembrava de ter mencionado nada que motivasse a percepção. “É muito bom você contar as histórias das brasileiras, mas você precisa começar a falar sobre as latino-americanas e africanas também.” Agradeço a Rafaella, portanto, a inspiração para esta coluna.
Naquele encontro em Bogotá, na Colômbia, Rafaella se apresentou como afroamazônida, mesmo tendo nascido na Guiana Francesa, departamento ultramarino da França (apesar de na prática ser uma colônia, desde 1946 o território não tem mais o status oficial de colônia). “Nossos rios não são fronteiras, são avenidas na mata, que nos conectam com nossos irmãos e irmãs do outro lado da beira.” Rafaella me explicou que independentemente da nacionalidade, povos da floresta compartilham o mesmo modo de viver, a mesma compreensão da pororoca, da maresia, do período do tucumã, dos seres encantados.
Rafaella fala português como as paraenses que conheci —jamais diria que não compartilhamos a mesma língua materna. Com fluência, também fala francês, espanhol, inglês e a língua afro-guianesa, comumente chamada de crioulo. Tradutora, dirige o Instituto INTERRMUN’Ã de Línguas e Tradições da Amazônia. Feminista, é uma das fundadoras do AFROIANA Urukudan e das oficinas de mulheres afrodiaspóricas reempoderadas FANMNÈG…FÓ! O maior desafio percebido por ela de viver em um departamento francês é a invisibilidade de pessoas afroamazônidas. “Pelas leis francesas, a igualdade dos cidadãos prevalece, mas não se trata de equidade entre cidadãos franceses que moram no território hexagonal e os dos territórios ditos ultramarinos”, explica.
Apesar de ter reconhecido a escravidão como crime contra a humanidade em 2001, a França não prevê direitos específicos a pessoas afrodescendentes, como, por exemplo, o Brasil assegura —ao menos na Constituição— a posse de terra a quilombolas. “São proibidos os censos e as estatísticas étnicas. Não são consideradas as consequências da história colonial na realidade das mulheres afroguianesas. Nossos conhecimentos são cobiçados pelas instituições científicas ocidentais, mas não são reconhecidos como frutos de uma ontologia ancestral amefricana.”
A vida, para Rafaella, acontece na Amazônia, não em uma colônia ou território francês. “A minha vida é de relação diária com a terra, as árvores, os igarapés, os rios e os pássaros. É o cheiro do verde, é o cheiro das chuvas, da grande e pequena estação das chuvas. É aguardar que a chuva passe para sair de casa”. Na língua afroguianesa, Rafaella explica: “Sa to pa konèt pli gran pacé to”, ou seja, “é preciso ter humildade com o que ainda não sabemos, com a Mãe Terra , seus mistérios e todas as energias que nos acompanham.” Noventa por cento das terras da Guiana Francesa pertencem ao Estado Francês, que afirma ter lá o maior parque europeu —veja bem— na Amazônia. “A liberdade de entrar na mata para poder manter nossas práticas ancestrais medicinais, artesanais, tradicionais está dificultada. Há regulamentações que determinam a lista e o número das espécies que podem ser caçadas nas matas, nos rios.”
Segundo Rafaella, as afroguianesas têm se dedicado às ações conjuntas solidárias, comunitárias, pelo bem viver, na expectativa de basearem a vida em economias mayouri, em harmonia com a floresta, sem poluição dos rios pelo mercúrio. “As pessoas devem ser donas da sua terra, sem viverem ameaçadas pela possível expropriação por causa de mega projetos apoiados pelas autoridades locais ou o Estado”, afirma, como já ouvi de mulheres brasileiras, colombianas, chilenas. Reivindicações urgentes e sem fronteiras.
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