O CNE (Conselho Nacional Eleitoral) venezuelano declarou que Nicolás Maduro foi reeleito no dia seguinte à votação, com 80% dos votos contados. Conforme o comunicado do dia 29 de julho, sua vantagem sobre Edmundo González era de sete pontos percentuais (51,2% a 44,2%).
A foto de Maduro aparecia na cédula eleitoral 13 vezes. A principal candidata da oposição foi proibida de participar do pleito devido a “irregularidades administrativas” no período de 2011 a 2014. Os venezuelanos que moram no exterior — mais de um quarto da população — foram quase todos proibidos de votar (pouco mais de 1% conseguiram exercer esse direito), devido a uma lei que permite ao órgão eleitoral do país definir, eleição a eleição, as condições necessárias para o exercício desse direito.
Porém, o que vem gerando controvérsias é o fato de que a divulgação discriminada das atas das urnas não foi concluída devido a um suposto ataque hacker. Assim, é impossível afirmar com certeza quem ganhou a eleição. Isso se torna ainda mais problemático uma vez que o grupo de pesquisadores da plataforma Alta Vista analisou uma ampla amostra de comprovantes eleitorais e declarou que González venceu com folga. Trata-se da mesma conclusão à qual chegou a Associated Press, que diz ter processado imagens das folhas de apuração de um total de 79% das urnas, o que corresponde a 10,26 milhões de votos.
As urnas eletrônicas venezuelanas foram operadas pela Smartmatic de 2004 a 2017, ano em que o país realizou um sufrágio para definir uma nova Assembleia Constituinte, após o governo anular as atribuições da Assembleia Nacional. A empresa identificou uma discrepância de mais de um milhão de votos entre os resultados apurados e os divulgados pelo conselho eleitoral. O resultado foi o cancelamento do convênio, transferido para a Ex-Cle Soluciones Biométricas, que já possuía vários outros contratos de biometria com Caracas.
Desde então, o sistema de votação vem sendo apresentado como paradigma de segurança pelo governo. Citá-lo é prática comum quando o assunto é o risco de fraudes.
As urnas venezuelanas não estão ligadas à internet, o que afasta qualquer hipótese de adulteração massiva dos resultados. Elas funcionam mesmo se a alimentação elétrica for interrompida, eliminando riscos de falhas operacionais. Os votos digitalizados são acompanhados pela emissão de uma versão em papel, que então é depositada numa segunda urna, conforme defendido por críticos das urnas puramente eletrônicas.
A ideia é poder verificar independentemente os resultados, mesmo que um software malicioso, instalado em uma ou mais urnas, afete os registros digitais. A defesa desse procedimento é minoritária no Brasil, dado que o cenário crítico em questão é improvável.
Na Venezuela, após a contabilização dos votos, apenas os resultados consolidados nos boletins são transmitidos pela internet.
O chefe do Ministério Público venezuelano, Tarek William Saab, instaurou um processo investigativo sobre os supostos ataques hackers de natureza eleitoral. Conforme a nota oficial divulgada, o ataque foi ao sistema de transmissão de dados e teria ocorrido na noite do dia 28 de julho, ou seja, após o encerramento da votação. Segundo a nota, “embora a ação tenha sido evitada, [os hackers] conseguiram pausar ou atrasar a leitura do boletim final sobre os resultados eleitorais”.
Se o próprio PGR diz que a ação hacker foi evitada, quem sou eu para discordar? O máximo que posso dizer é que, do ponto de vista técnico, não parece haver nenhuma justificativa para que o CNE não publique a totalidade das atas, detalhadas por colégio eleitoral e mesa de votação, como de praxe no país, uma semana após o pleito.
Pois é aí que começa outro problema que igualmente me preocupa. Após os infames ataques golpistas de 8 de janeiro, boa parte dos defensores da democracia brasileira se uniu para rechaçar o vandalismo e a posição do ex-presidente Jair Bolsonaro, que continua sendo investigado, bem como para reafirmar a segurança das urnas eletrônicas, pilar da democracia.
O que se criou ali foi uma rara oportunidade para a redefinição de posições: de um lado, os que jogam o jogo da democracia e, de outro, os que o rechaçam. Essa conjuntura desaba quando parte significativa do “campo democrático” apela ao hackeamento negado pelo PGR para que não haja transparência nos resultados do pleito venezuelano, colocando em dúvida a integridade das urnas eletrônicas, exatamente como se lê na cartilha da extrema direita.
Trata-se de um erro estratégico tremendo porque explicita que a mentira é permitida desde que seja conveniente. Mas, afinal, não é isso que pensam os seguidores de Steve Bannon? Não é essa a arma com a qual Trump ataca ao mesmo tempo os adversários e as próprias instituições?
A polarização não é o mero reflexo de posições antagônicas sobre economia ou costumes. Ela tampouco é o reflexo da existência de um polo de pensamentos radicais, odiosos e intransigentes. A polarização é a situação formada quando grupos ideologicamente contrários aceitam que os fins justificam os meios. E, assim, na certeza de que em nada se parecem, refletem-se no espelho.