Perto de 40 milhões de pessoas são pobres nos Estados Unidos, o que é excessivo para a economia mais rica do planeta. São pobres 10% dos americanos, e a porcentagem é bem maior que a do Canadá, Coreia do Sul ou Alemanha.
Essa informação não é inédita, mas serviu para deslanchar uma recente reportagem sonora de bom fôlego na NPR, a rádio pública dos EUA. No programa, especialistas gravitaram em torno de Matthew Desmond, professor em Princeton, prêmio Pulitzer e autor de “Poverty by America” (Pobreza de autoria americana), inédito no Brasil.
A NPR não se propõe a reconstruir a longa história das carências materiais de um país de passado escravocrata ou sobre o qual o aristocrata francês Alexis de Tocqueville já dizia, na primeira metade do século 19, que os empresários fabris exauriam seus operários e os mandavam, para recuperarem a saúde, a entidades beneméritas.
O que a reportagem faz é repassar os momentos em que a pobreza americana ganhou visibilidade política.
Foi assim no pós-1945, quando ela sobreviveu ao pleno emprego, e um autor como Michael Harrington desmontou o mito segundo a qual a pobreza era apenas um estágio provisório de trabalhadores em inevitável ascensão. Ao contrário, argumentou, o pobre faz parte de um conjunto seguido de gerações.
Veio em 1960 o presidente Dwight Eisenhower e seu primeiro apelo à luta contra a pobreza. Mas as medidas só seriam formatadas em 1964 com o presidente Lyndon Johnson. À época, generalizou-se o “Food Stamp” (selo fornecido pelo governo e trocado por comida nos supermercados).
Uma economista chamada Mollie Orshansky, que assessorava Johnson, deu a primeira definição de quem seria legalmente pobre. Era o caso, segundo ela, de quem gastava um terço ou mais de seu orçamento em alimentação.
De certo modo, os EUA acordaram para a existência da pobreza e passaram a dissocia-la da versão idiota de que o pobre era apenas aquele que não gostava de trabalhar. O governo falava agora em “guerra à pobreza” e, de 1960 a 1970, ela caiu pela metade.
Nos anos 1990 foi instituído um novo índice em substituição ao de Orshansky, que é adotado até hoje e inclui a comida, mas também planos de saúde, auxílio em pensões e sobretudo despesas com moradia, de aluguel ao financiamento da casa própria. Esse novo índice passou a ser conhecido pelo neologismo Tanf (sigla em inglês para Ajuda Temporária para Famílias Carentes) e, sem ele, a proporção de pobres nos EUA seria com certeza maior.
Acontece que esse dinheiro é federal e enviado a cada ano aos estados, que são pouco criteriosos em seus gastos. Matthew Desmond relata, por exemplo, que inexiste um controle para que a verba não custeie colônias de férias cristãs, aconselhamento pré-conjugal ou outras finalidades que nada têm a ver com a pobreza.
Desmond diz que, na salada feita por essa montanha de dinheiro, também é considerada como auxílio a famílias carentes a possibilidade de se descontar do Imposto de Renda uma parcela dos juros pagos para a compra da casa própria.
O problema é que se pode financiar com o mecanismo residências secundárias ou tudo o que dê para morar dentro, como iates. Esses detalhes acabam desencadeando a seguinte aberração: esses incentivos custam por ano US$ 26 bilhões, mas o grosso de seus beneficiários são brancos e pertencem aos 20% dos americanos de maior rendimento familiar. Não são os pobres.
É por isso que prevalece nos EUA uma certa confusão. O dinheiro para programas beneficentes é maior que o destinado às famílias carentes. E é dessa massa maior de dólares que saem os US$ 3 trilhões de benefícios previstos pelo orçamento de 2023.
Mas a NPR e seu principal convidado, Matthew Desmond, não caem na armadilha de qualificarem essas distorções como o produto do neoliberalismo, pelo qual só os mais ricos seriam os beneficiados, relegando os realmente pobres à condição de bucha de canhão na retórica oficial. Não é assim.
Vejamos. Todos os programas de distribuição de renda no primeiro ano de governo do conservador Ronald Reagan (1981) custaram para cada contribuinte americano US$ 1.000. Caso o neoliberalismo tivesse diminuído o papel do Estado, esse montante teria caído.
Mas não foi o que aconteceu. Ele subiu para US$ 3.400 no primeiro ano do governo de Donald Trump (2017). Descontada a inflação, o aumento real foi de 237%, diz Desmond, que é considerado no meio acadêmico um homem de esquerda.