É o que revelam os documentos e achados arqueológicos no continente. “As culturas pré-hispânicas eram muito abertas para temas importantes que estamos discutindo agora, no século 21”, afirmou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) o professor de arqueologia Oscar Gabriel Prieto, da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos.
Esta evolução característica dos povos pré-colombianos foi silenciada por séculos. O argumento de que a Europa seria “superior” aos indígenas era usado para justificar a escravidão e o massacre dos povos originários do continente americano.
Mas essa noção mudou muito nos últimos tempos. Agora, os historiadores preferem se concentrar na convergência dos dois mundos e não na comparação entre eles. A América e a Europa “lideravam sua própria evolução histórica que, em muitos casos, foi interrompida abruptamente pela chegada dos europeus [à América]”, segundo o historiador Esteban Mira Caballos, membro da Academia Dominicana de História.
Mesmo evitando comparações, os especialistas reconhecem que, do ponto de vista atual, muitas das sociedades pré-colombianas podem ser consideradas “civilizadas”, harmônicas e inovadoras.
1. Mais igualdade de gênero
Enquanto grande parte do mundo continua lutando até hoje contra séculos de desigualdade de gênero, Prieto explica que “os Andes, o território que hoje compreende o Peru, Bolívia, Chile e Equador, abrigava sociedades nas quais as mulheres tinham direitos iguais aos dos homens”.
Segundo ele, “existem casos históricos reais sobre a importância e o papel das mulheres com muito poder e sua influência na política, sociedade, religião e economia”.
Prieto conta que, ao chegar a Piura, no litoral norte do Peru, o conquistador espanhol Francisco Pizarro (1478-1541) encontrou mulheres conhecidas como capelãs. Elas eram chefes que dominavam e controlavam aspectos políticos e religiosos das suas sociedades.
A arqueologia revelou casos antigos como o da Senhora de Cao —uma mulher que governou entre os anos 300 e 400 d.C. e foi enterrada com símbolos de rainha, chefe e sacerdotisa em um túmulo repleto de ouro, prata e todo tipo de ornamentação.
As mulheres astecas do México antigo também contavam com direitos “mais avançados do que suas contemporâneas europeias”, mas eles desapareceram com a conquista espanhola.
“Documentos do século 16 mostram mulheres defendendo casos perante a corte —um direito que elas perderam após a chegada dos espanhóis, que impuseram seu próprio sistema de moral e justiça”, conta à BBC News Mundo a antropóloga Susan Gillespie, da Universidade da Flórida.
Gillespie afirma que mulheres e homens colaboravam com seu trabalho para a economia do lar, sem distinções. Era impossível manter a casa sem a colaboração de ambos. “Havia muitas mulheres empreendedoras, que vendiam seus produtos na praça da cidade e traziam os ganhos para casa”, conta a especialista.
“Sua contribuição para toda a economia era enorme. Poderíamos dizer que, naquele mundo, as relações de gênero eram mais equilibradas.” Para Prieto, esta série de comportamentos demonstra que, diferentemente dos dias atuais, em que se discute a falta de direitos das mulheres, a situação na América pré-hispânica era muito diferente. “As mulheres não eram julgadas pelo seu gênero”, diz o professor.
2. Mais tolerância quanto à diversidade sexual
Prieto também afirma que “não há descrições de pessoas julgadas ou perseguidas pela sua homossexualidade“. “De fato, a cerâmica moche [do Peru antigo] representa cenas homossexuais, tanto entre homens quanto entre mulheres”, segundo o professor. “Isso indica que a arte legitimava a preferência de gênero das pessoas.”
O historiador emérito da Universidade de Barcelona, na Espanha, Miquel Izard Llorens, também fala sobre a tolerância e a normalização da homossexualidade entre as tribos pré-hispânicas, que povoavam mais de 70% do continente.
“Quando os espanhóis chegaram, eles descreveram essas sociedades como pessoas sem Deus, sem rei e sem lei”, explica o historiador. “Uma descrição muito precisa, pois a vida nessas sociedades girava em torno do prazer e elas procuravam a maior quantidade de prazer possível.”
Diversos estudos indicam que a homossexualidade estava presente em quase todas as culturas pré-hispânicas. De forma geral, havia altos níveis de tolerância, embora seja difícil estabelecer conclusões definitivas devido à falta de documentos suficientes e ao tabu que envolve o tema há séculos.
3. Projetos urbanos e modo de vida sustentável
É fato conhecido que havia no continente americano cidades tão imponentes quanto as da Europa do século 15. Um exemplo é Tenochtitlán, a capital dos astecas, que Hernán Cortés (1485-1547) chegou a considerar “mais impressionante que Roma“.
Havia também, no atual território peruano, a grande cidade imperial de Cusco e a não menos poderosa Chan Chan, capital do antigo reino de Chimu, um dos maiores povoamentos humanos já construídos com adobe no mundo.
Mas talvez seja menos conhecida a alta sofisticação dessas cidades no setor de reciclagem de recursos e aproveitamento de água, dois problemas enfrentados pelo mundo atual. “Eu me atreveria a dizer que as sociedades pré-hispânicas adotaram conceitos de reciclagem que nós só começamos a discutir na década de 1980”, segundo Prieto.
O arqueólogo afirma que “muitas das pirâmides que conhecemos foram construídas com reciclagem”. “Eles reutilizavam o lixo que produziam, a terra que geravam, para erguer grandes monumentos para glorificar sua própria sociedade”, aponta.
Cidades importantes da América pré-colombiana contavam com complexos sistemas de drenagem ou irrigação, que só chegariam à Europa anos mais tarde.
“A agricultura era muito rentável no México e no Peru antigo graças, em parte, aos extraordinários sistemas de irrigação”, acrescenta Izard Llorens. “No caso dos incas, é possível que eles estivessem funcionando há milhares de anos, sem prejudicar o meio ambiente.”
“E, no caso do México-Tenochtitlán, a sociedade se estabeleceu dentro de um lago com agricultura de ‘chinampas’ [uma espécie de canteiro flutuante], de forma que o próprio lago atuava como provedor e a produção era muito mais fácil do que em Castela [na Espanha], na época”, explica o professor.
“Quando o assunto era tecnologia agrícola, muitas dessas sociedades realmente sabiam como trabalhar com o seu entorno, algo que agora estamos retomando”, afirma Gillespie.
Mas o professor Mira Caballos destaca a diferença entre as grandes civilizações e as tribos itinerantes que povoavam 70% do continente, vivendo de forma sustentável e autossuficiente, totalmente adaptadas ao seu meio natural, sem modificá-lo. “É óbvio que os grupos humanos mais evoluídos tiveram maior capacidade de transformar a natureza e, portanto, prejudicar o meio ambiente“, segundo o professor.
Por muitos anos, na ideologia de progresso que dominou o mundo, o modo de vida dos grupos pré-hispânicos itinerantes era considerado “bárbaro e atrasado”. Este argumento foi usado para justificar sua exploração pelo mundo ocidental.
“Mas, pelo menos do ponto de vista atual, esses bandos e tribos não eram necessariamente mais bárbaros do que os recém-formados Estados ocidentais, que logo provocaram hecatombes em muitos lugares do mundo que, supostamente, eram bárbaros e incivilizados”, destaca Mira Caballos.
4. Menos registros de pobreza extrema
Erradicar a desigualdade e a pobreza extrema é um dos grandes desafios dos nossos tempos, particularmente na América Latina, uma das regiões do mundo com maior desigualdade. Embora as sociedades pré-colombianas ainda mantivessem consideráveis diferenças sociais e de acesso a recursos e alimentos entre a elite e o restante da população, não há registros de pobreza extrema e em larga escala.
No seu amplo estudo sobre os primeiros nativos americanos que foram à Europa, Mira Caballos relata que, quando chegavam à Espanha, os indígenas procedentes das tribos americanas observavam o suposto progresso do Velho Continente como um mundo bárbaro.
“Mais do que se impressionar pelos edifícios modernos, o que chamava a atenção deles era a pobreza extrema”, afirma Mira Caballos. “Eles vinham de sociedades simples e humildes, mas muito mais igualitárias. Em muitas comunidades aborígenes, não era permitida essa miséria entre os seus membros.”
“Do ponto de vista arqueológico, é difícil confirmar o nível de pobreza que poderia haver, mas temos conhecimento de um sentido de comunidade no mundo asteca, com as pessoas organizadas em bairros onde elas cuidavam uma das outras”, comenta Gillespie.
“É verdade que a elite, a realeza e a aristocracia viviam muito bem e que havia pessoas mais pobres do que outras, mas também não há a impressão de que existisse mendicância, com pessoas sem teto suplicando nas ruas”, conclui a antropóloga.
Este texto foi publicado originalmente aqui.