A cartilha de Trump para a economia —protecionismo, fim de regulamentações ambientais e corte de impostos— é o completo rechaço do legado de Biden. O que ampara essas propostas é a ideia, tão repetida em seu discurso na convenção republicana, de que a economia americana é terra devastada, e que Biden entrega um país destruído a seu sucessor.
Isso simplesmente não é verdade. O PIB cresceu 2,5% em 2023, mais do que as outras economias desenvolvidas. O desemprego está baixo, em torno de 4%. A inflação, que chegou ao pico em 2022, hoje está em 3% ao ano. A princípio, Kamala tem um legado positivo a defender.
O discurso de Trump, contudo, embora não bata com os números, bate com a percepção de grande parte dos cidadãos. Numa pesquisa de maio (da The Harris Poll para o The Guardian), 56% dos respondentes acham que os Estados Unidos estão em recessão. Entre democratas, foram 49%. Ou seja, parece haver uma desconexão entre os dados e a percepção popular, o que favorece Trump.
Há duas explicações possíveis aí. A primeira é que, apesar das aparências, não há realmente uma desconexão; estamos apenas olhando para os dados errados. O pessimismo com a economia se deve à inflação alta dos últimos anos, que afetou mais o custo de vida do que os salários. Os juros, ademais, ainda estão altos.
Nem tudo, no entanto, se encaixa nessa explicação. Por mais de um ano os salários têm subido acima dos preços, e mesmo assim a percepção continua negativa. Por fim, um dado crucial: os americanos estão mais otimistas com suas finanças pessoais do que com a economia nacional (Pew Research Center, maio/24). Ou seja, não são apenas dificuldades pessoais colorindo a percepção nacional.
Por isso, suspeito que haja mais em jogo. A desconexão entre percepção e dados é real. E ela se dá porque, hoje, o campo da narrativa tem uma autonomia própria.
No passado, todo mundo assistia os mesmos canais e lia os mesmos jornais. As narrativas políticas estavam mais ancoradas nas notícias e números (e leituras desses números) que a imprensa trazia. Hoje, quando cada um consome suas próprias fontes, dados e narrativas não precisam andar juntos. Crenças se formam com base em leituras da realidade completamente diversas daquelas da mídia e das estatísticas.
As histórias que as pessoas ouvem e recebem de seus pares são tão importantes quanto a “realidade” econômica (aspas para lembrar que os dados são eles próprios recortes parciais e falíveis de alguns aspectos da realidade, e não o próprio mundo real). Com a expectativa da má gestão democrata, eleitores veem em cada história negativa uma comprovação de sua percepção.
Fatos ou dados inconvenientes muitas vezes nem chegam ao eleitor, mas se chegam podem ser desconsiderados como fake news ou fraude. Isso não quer dizer que essas narrativas sejam invencíveis, mas demandam mais do que apenas esperar que a economia sozinha mude a percepção das pessoas.
No Brasil ocorre algo similar. Lula tem muita dificuldade de conquistar aprovação dos evangélicos, e agora aposta que a resposta pode estar no preço dos alimentos. Espera-se que, se o preço do arroz e feijão cair, sua aprovação melhorará nos segmentos mais pobres, incluindo uma grande fatia de evangélicos. Talvez não seja tão simples.
Líderes populistas tratam todos os problemas como desafios de comunicação. Criando a relação correta com a opinião pública, é possível vender qualquer narrativa sem consertar as questões reais que subjazem ao discurso. Essa é uma tentação perigosa que pode levar a políticas desastrosas, como as que Trump propõe. Mas evitar que ela se imponha é uma batalha que terá de ser travada no próprio campo da comunicação.
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