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Livro de vice de Trump retrata ‘lamento caipira’ dos EUA – 20/07/2024 – Mundo

A nomeação de J.D. Vance para vice-presidente na chapa de Donald Trump traz de volta aos holofotes seu livro “Era Uma Vez Um Sonho”. A obra ajuda a explicar a inesperada eleição do republicano em 2016 —e também sua liderança no pleito deste ano contra Joe Biden.

O título original, “Hillbilly Elegy”, é eloquente de um jeito que a tradução para o português não conseguiu ser. “Hillbilly” é um termo usado para descrever os moradores das regiões rurais e montanhosas do país, como “caipira” no Brasil. O livro é, então, o “lamento caipira”.

J.D. Vance nasceu no Kentucky e cresceu em Ohio. Ou seja, nos bastiões dessa cultura caipira. Ele assistiu à degradação econômica e social dessa parte do país. O tal lamento é pela perda dos valores culturais que foram importantes na sua criação.

O livro saiu em meados de 2016, alguns meses antes de Trump vencer as eleições. J.D. Vance era um duro crítico do republicano. Ainda assim, seu texto tinha bastante em comum com a campanha e posterior presidência de Trump — tanto que em seguida o autor passou a apoiá-lo.

J.D. Vance ganhou importância naquele momento porque explicava, ou dizia explicar, um fenômeno central à política das últimas décadas. Seu lamento caipira era uma análise da guinada dos eleitores democratas para o partido Republicano, contextualizando assim as vitórias de Trump.

O livro “Era Uma Vez o Sonho” captura, nas palavras do autor, “o que acontece com a vida de pessoas reais quando a economia industrial vai mal”. Como artifício para ganhar legitimidade, J.D. Vance usa sua experiência. Ou seja, ele diz ao leitor: essas são coisas que eu vi e vivi.

A região dos Apalaches, onde o autor cresceu, faz parte do chamado “cinturão de ferrugem” americano. É uma fatia dos Estados Unidos afetada pelo desmonte das indústrias, como a automobilística, que empobreceu a população e fez com que migrasse para outras partes do país.

J.D. Vance conta, por exemplo, que testemunhou a perda de empregos, o esvaziamento das cidades e o crescimento do crime. Isso aparece em coisas banais, como o furto de suas bicicletas, e nas tragédias de seus familiares e amigos, muitos dos quais foram vítimas de drogas e álcool.

Essa degradação é evidente também nas “bocas de Mountain Dew”. O termo se refere aos dentes destruídos pelo consumo excessivo do refrigerante desse nome, que é comum nos Apalaches. São coisas que leitores americanos identificam (e com que se identificam) de imediato.

J.D. Vance sugere em “Era Uma Vez Um Sonho” que esse fenômeno sócio-econômico afetou de maneira excepcional as populações brancas dos Apalaches. É uma maneira de dizer que a classe social é mais importante do que a raça para explicar as transformações nesse cinturão.

É uma ideia perigosa, em um país que vive a ascensão do supremacismo branco, ou seja, a noção de que os brancos são superiores às demais raças. Não surpreende que, mesmo quando J.D. Vance atacava a campanha de Trump em 2016, as suas teorias seduzissem o republicano.

J.D. Vance critica, por exemplo, as políticas públicas democratas voltadas às populações negras. O que ele parece sugerir é que presidentes como Barack Obama ajudaram os negros pobres quando quem na verdade precisava de ajuda eram os brancos caipiras como ele.

É a expressão clara de um ressentimento bastante comum no país. É a articulação, também, da noção de uma excepcionalidade branca. Mesmo seus pobres são superiores, J.D. Vance parece dizer. Nessa visão, é um equívoco auxiliar os negros —mesmo depois de séculos de escravidão.

O livro foi um best-seller e virou até um filme com Glenn Close e Amy Adams. O sucesso é um indício de que tocou em um ponto sensível. É também resultado de uma tática inteligente de mesclar memórias pessoais com menções a estudos de ciência política, social e econômica.

Mas J.D. Vance só cita autores que concordam com suas teses. Ignora que muitos pesquisadores de renome não acreditam que a classe social explica o mundo sozinha — em vez disso, levam em conta a mistura de classe, raça e gênero, a abordagem chamada de interseccionalidade.

O livro sem dúvida vale a leitura de quem quer entender o mundo. Reflete as ansiedades de uma fatia importante dos eleitores republicanos. Pode explicar a vitória cada vez mais provável de Trump e seu escudeiro, J.D. Vance. Pode pautar suas decisões nos próximos anos.

A ênfase no sofrimento das populações rurais brancas, porém, incomoda. Em especial, porque os Apalaches são povoados também por negros e hispânicos, que J.D. Vance raras vezes menciona no livro. Como se, no fim das contas, eles não merecessem o seu lamento caipira.

Fonte: Folha de São Paulo

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